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Liberdade trágica, destino do sujeito.

Cirlana Rodrigues (Haeresis Associação de Psicanálise)

Introdução

Liberdade e determinação convergem na relação do sujeito de não ceder de seu desejo (Lacan, 1959-1960). Proposição que busco em Édipo em Colono e sua transformação da determinação simbólica cerzida pela culpa para uma saída não determinada em seu destino trágico; em Antígona, onde o trágico de seu destino advindo do incesto é vertido em tragédia, na cadeia de significantes encenada diante de todos; e, em Jacques Lacan no seminário sobre a ética (1959/1960), colocando no centro da experiência analítica o para além do princípio do prazer, o gozo, recusando a promessa do utilitarismo técnico a serviço de um bem comum. Assim, a psicanálise sustenta na polis o direito ao desejo. Direito ao direito de desejar em tempos de interrupção da cadeia significante, interrupção da historicidade de cada um, como nos sonhos no terceiro Reich (Beradt, 2017): ao repousar o corpo, aquele que sonha vigia os significantes que podem escapar, pois os sonhos, reveladores dos desejos, são proibidos.

1. A transmissão de Édipo em Colono.  A transposição do Outro. A transgressão da lei, em Antígona

Édipo miserável e degradado entra em Colono arrastado por Antígona, exuberante e leal. Está cansado, cego pela paixão ao saber e ao poder trilhado em terras proibidas, mas é um cego que vê.  O velho Édipo assenta-se sob o sagrado das oliveiras, às sombras das muralhas de Atenas. Ele vai até o ponto do estrangeiro indesejável em Colono. Entra em Hades pelo ‘limiar do bronze”, pelas escadarias do brilho, interseção do absoluto silêncio entre vida e morte não habitado pelas palavras, seu destino proscrito, residência definitiva. O estrangeiro ainda não reconhecido como o rei invoca a polis em sua presença mutilada, “terrível de ver”, para ali permanecer, pedido ao mesmo tempo religioso e político que perturba as normas da comunidade. Nesse ponto, Édipo muda sua posição diante da lei que o condenou, mudança de perspectiva em relação aos seus crimes: antes ele não sabia, agora ele supõe saber. Édipo pagou, apresenta-se como aquele que porta no destino do herói a dívida cumprida, retribuída. Édipo se nomeia, no exílio, “executor por mão própria” de sua maldição (Fialho, p. 267, 1996), até então, “na ignorância, limitou-se, dentro dos parâmetros da ética de retaliação, a pagar ofensas recebidas”. Essa mudança é fundamental para o destino de sua linhagem:  o carácter amoral do destino de Édipo se mantém inalterável diante da lei civilizatória do incesto. No entanto, Édipo saído da alienação por culpa, supõe que para além desse destino há ainda espaço para questionar sua posição: “Ora como posso eu ser mau por natureza?” Édipo não renega sua historicidade, inscreve o paradoxo do desejo defendendo e rejeitando os velhos crimes, ultrapassando aparências e conjunturas externas, “para chegar a uma verdadeira disposição interior do indivíduo” (Fialho, 1996, p. 39).

 Édipo se afasta da casta masculina, a mal diz, afrontando a lei ática de que a sobrevivência familiar é responsabilidade dos homens. No espaço de sua morte, tem sua tardia, mas poderosa redenção, onde o passado que o determina e funda sua tragédia não o culpabiliza mais, onde seu nome e seu destino dão lugar a uma “dor de existir” (Lacan, 1958-1959), no limite da adversidade e do sofrimento. Ao maldizer os filhos e sua luta pelo poder, Édipo ensina sobre a diferença entre verdade e aparência: a verdade tem a ver com o absoluto que escapa à palavra. Nesse espaço de sepulcro, da verdade, Édipo e sua lei ainda determinam o bem para quem lhe acolher e o mal para quem o repudiar. O desejado túmulo, pelo qual suplica durante toda a peça, lhe será concedido se ele calar-se, silenciar-se. O Outro, ao conceder o bem comum quer o silêncio, para confirmar sua palavra. O que fará Édipo rejeitar, com violência e pela última vez, toda a carga de culpa e participação ativa e consciente nessa trama antinatural que o marcou e de que agora luta por se libertar, sustentando, até o final, a força da palavra, mesmo no encontro com o inefável pelo silêncio sagrado que pactua com Teseu. Para além do sistema das normas da cidade, ultrapassou o limiar do sacrilégio com o sagrado e lá regenerou, no laço com a cidade e seu governante, seu destino de parricida incestuoso, e é acolhido pelos deuses, acima da aparência da forma ou das normas instituídas, numa polis baseada em princípios humanos como a compaixão e o sagrado.

O cego domina agora a cena, nessa esmagadora convergência, simultaneamente evidente e misteriosa, dos deuses e do seu destino (Fialho, 1996), onde sua posição é de uma autoridade majestosa que o vai distanciando dos que o acompanham, na plenitude de uma visão interior que é adesão ao divino, adesão a sua excepcionalidade, modelada pelo sofrimento e possibilitada pela compaixão e amizade de Teseu que foi capaz de ver mais fundo no homem e no incompreensível do seu destino (Fialho, 1996). Édipo diz: “Quando já nada sou é então que me torno um homem”.  Édipo é despojado dos velhos farrapos da sua existência e revestido de novas roupagens. Com elas passa o limiar fascinante, onde vida e morte se tocam, recolhido agora em harmonia no mistério de um novo seio materno, um túmulo oculto, não divulgado, não localizável, porém, que está em qualquer lugar do bosque em Colono como presença em ausência que determina o cotidiano da polis: o segredo a ser transmitido, uma democracia pautada no sagrado [de cada um], no sofrimento e nos valores como bens comuns. Édipo, recolhido ao mais íntimo de seu túmulo, converge os antagônicos nesse limiar entre vida e morte, sua herança em Colono é a política. Dessa posição, Antígona, até então mediadora, regressa a Tebas, lugar onde a saga de seu sangue teve início, lugar da barbárie, do desrespeito com o humano e com o político.

Se com Édipo a tragédia concerne a uma experiência singular, Antígona em Tebas concerne a uma experiência trágica coletiva, pois Creonte, o tirano piedoso e medroso, vai contra as leis não apenas dos deuses, mas contra as leis da cidade, em nome da imposição vaidosa de suas leis. Todo acontecimento na esfera pública é uma experiência estética (aos moldes de Walter Benjamin/1936), de percepção, de reflexão e visão interior, vitais para a cidade. Antígona é capaz de refletir a partir da sua experiência trágica e se repensar e revigorar a partir do que a fundamenta e lhe dá natureza, despojando-se, como Édipo no instante supremo, dos farrapos do sofrimento e dos valores gastos e degradados de todas as demagogias e traições, para renascer de si mesma, qual o “rebento que a si mesmo se refaz”.

Lacan (1959-1960) fica fascinado com o brilho de Antígona no caminho que ela faz na cena trágica na direção do que deseja, onde não vemos seu ato final, só depois.  Antígona, em seu nome, arrasta e transpõe, coloca-se para além do limite razoável de sua existência na relação com seu desejo. Afronta a lei do tirano: ao cobrir o corpo do irmão de pó, esconde e revela, ao mesmo tempo, seu desejo, o faz de modo deliberado na cidade. Se em Antígona há esse corpo entre a lei do desejo e a lei do tirano, fora da cena de Sófocles há o sujeito e seu sintoma enlaçando o privado e o público, advindo entre isso e aquilo onde o ato que instaura outra direção a seu desejo não é à vista de todos, mas também não é às escondidas.

Antígona é determinada, frase paradoxal. Chega em Tebas para não ceder de seu desejo, nessa polis injusta há que responder pela posição de reaver o que não pode ser reencontrado.  Essa é a análise como experiência trágica e não como ordenação da vida. Como tragédia, essa experiência é ato em cena, criação com o que padece do significante – o rejeitado no simbólico retorna no real da transferência analítica, retorna a Tebas. O sujeito encena seu contraditório: o desejo como aquilo que supõe saber e o desejo como aquilo do qual que se defende, do qual se culpa. Lacan (1959/1960) mostra que no interior da tragédia de Sófocles a heroína faz a escolha absoluta não motivada pelo bem. A função social de Antígona é não se submeter ao absurdo da lei que Creonte representa, é revoltar-se em nome do direito que lhe foi dado pela filiação: direito ao desejo. Na tragédia, Lacan exalta a posição de Antígona na vida: transgredindo a determinação da jurisprudência do bem comum, édestinada a vir em auxílio dos mortos, dos excluídos do campo dos direitos.

Da transmissão que Édipo faz das vicissitudes do destino, o destino trágico de Antígona se encontra com a liberdade trágica (liberté tragique, Lacan, 29/06/1960), liberdade como ato encenado na esfera pública, onde o sujeito é livre na medida em que não cede de seu desejo. Antígona de nada mais é culpada, ser a mulher tebana ideal não lhe satisfaz, decide por vontade própria seguir o que quer em uma cidade feita de homens: enterrar o irmão. Entra viva em Tebas, anunciando que sua hora chegou, a hora de lidar com seu desejo chegou – fim de uma linhagem que se encerra na tumba. Essa vontade não é narcísica, está no limite de seu desejo e do ultraje – a beleza de Antígona é ser liberta da imagem ideal de mulher o que impõe no Outro o reconhecimento em relação a seu desejo, reconhecimento que lhe dá uma posição na esfera pública. Antígona nos mostra a necessária e permanente batalha por esse direito/por todos os direitos: ela quer ser reconhecida na polis – que o tirano não lhe retire os direitos.

A beleza de Antígona traz a bifurcação do desejo: o belo que desperta o desejo, como a última barreira ante o real, a pulsão de morte que convida ao gozo.  Despertar do desejo que desanima o Outro, na medida da recusa de Antígona em submeter-se à lei do Outro. A paixão pelo saber herdada do pai, é posta em ato: sabe o que quer e faz o trilhamento necessário nessa direção, no “limite suportável da vida humana” – definição de gozo que o significante Antígona comporta [Atè]: “Queres sepultá-lo contra as determinações da cidade?” (Sófocles, linha 44, p. 09), lhe perguntam. A dor de existir, protagonizada por Édipo, é em Antígona uma margem da dor, onde pelo gemido lascinante anuncia o gozo por vir, limite que se transposto não tem volta. Responder à questão de Lacan “Agiste em conformidade com teu desejo?” (Avez-vous agi conformément au désir qui vous habite? – 06/07/1960) não tem volta. A posição de Antígona é a imagem fascinante, pois é o ponto de vista do desejo, seu brilho diante do real, para além dos diálogos, da família, da pátria e da moral, sem temor e sem piedade (Lacan, 1959/1960). Esse gesto ético e não qualificado se realiza no entre-duas-mortes, na suspensão da temporalidade onde a posição do ser não é metafórica, é sem conciliação e encerra o maldizer do pai, seu destino. O gesto de Antígona faz valer seu direito ao desejo, inscreve-o como bem comum, mas um bem sem objeto, intransitivado, no campo da psicanálise.

2. Não há destino para o sujeito, não há sujeito liberto de si

Não há destino para o sujeito, as pulsões padecem de destinos, resistem. Há o inconsciente com seu furo do saber. Freud substituiu o destino e as leis dos deuses pelo inconsciente. Seu ato libertário foi conceder a palavra aos pacientes, escutando-os, quando nenhum médico o fazia – pois isso colocaria em risco a crença no saber, e descobre leis muito particulares e singulares do psiquismo. Na esfera pública, o sujeito se escreve como cadeia de significantes. Escrita ofendida pela história dos homens – a relação do homem com o desejo encontra recusas, opressões, repressões, apagamentos, traumas. O destino trágico é uma advertência estrutural, lembrando Lacan (1959/1960) sobre a tragédia.

Checcia (2012) destaca a confluência do vocabulário da psicanálise com o vocabulário da política e da guerra como os significantes poder, liberdade, conflito, resistência. A liberdade aparece no núcleo dos fundamentos da psicanálise. A associação livre como uma oferta de liberdade restrita: para o psicanalista, amplia as intervenções, mas o coloca na posição de ouvinte restringindo sua ação à atenção flutuante que o enlaça à fala do analisante. Este se vê diante do paradoxo de poder falar o que quiser, pois o inconsciente tem seus mecanismos de repressão e recalque. Ainda, o sujeito mente de modo deliberado, e se defende dessa liberdade – o inconsciente é que decide o que fazer com a liberdade de falar o que quiser: “é que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar”, cito Lacan (1958/1959 – p. 647), pois isso impõe transpor o fantasma do Outro causa do desejo, e transgredir é arriscar não ter/ser o objeto de desejo.

A mudança de posição de Édipo e Antígona mostra a via do desejo apresentada por Lacan sobre  alienação e  separação, onde diz:

[…] nossa técnica usa frequentemente, como se a coisa corresse por si mesma, da expressão liberar alguma coisa – não é inútil observar que é aí que joga a questão desse termo que bem merece a qualificação de fantasma – a liberdade. O de que o sujeito tem que se Iibertar é do efeito afanísico do significante binário e, se olharmos de perto, veremos que, efetivamente, não é de outra coisa que se trata na função da liberdade.

(Lacan, 03/06/1964)

Sair da alienação, onde a liberdade como fantasma (em francês, o termo comporta desejo) é uma ficção que produzimos para conciliar o prazer com a lei, o contraditório entre o sujeito e o Outro. Como fantasma, atravessa o espelho e a lei do Outro, por isso assombra. A liberdade entra como o gesto de Antígona, de livramento da sina da alienação ao significante que vem do Outro, onde a separação – o “para além”, o “trans” – é o gesto de não se submeter às leis do Outro naquilo que recusa nosso direito ao desejo: é o sujeito de A barrado. O real é dito pelo analisante nas vias do desejo, da fala como ato, pela demanda que implica não abrir mão do Outro sobre o desejo, mas demanda sem objeto definido. E este pode ser o fantasma que tira a liberdade, submete a junção sem dialética, como pode ser o do quê na afânise de sentidos, há a separação. O mal-estar e os sintomas são efeitos do horror do sujeito diante do desaparecimento do desejo, por isso a liberdade ou a vida, a liberdade ou a morte. Diante disso, ou o sujeito se mantem na alienação, ou essa afânise ganha status de vazio, passa a ser topos de inscrição de um fazer com esse desejo do Outro, transpor esse vão de sentidos é saída da alienação, a liberdade possível.  O sujeito reconhece que o desejo é desejo do Outro – herança simbólica, o que restringe sua liberdade ideal é o que o autoriza a ir além, pois o que se transmite é a divisão do sujeito – a face cortante de Antígona que Jacques Lacan lê no final dos versos da tragédia de Sófocles.

O significante “liberdade” (liberté) circula no seminário de 1964 sobre os fundamentos da psicanálise, quando da excomunhão de Lacan da IPA: liberdade, política e clínica não são dissonantes. Se a dinâmica narcísica do fascismo foi lida por Lacan na teoria do estádio do espelho no ano de 1936, as operações de alienação, afânise e separação, como determinantes do sujeito, merecem ser lidas como resposta de Lacan a sua posição e relação com as leis da psicanálise, aos modos de regulação da experiência analítica.

Considerações finais

Nestes tempos de política, onde a anatomia é o destino, o psicanalista é chamado a se posicionar na esfera pública, dar a ver o brilho de seu gesto na relação com seu desejo em ser analista, sua ética. O fato de que regimes totalitários apagam as línguas, apagam individualidades e subjetividades, destituem sujeitos de seus direitos de fala e de todos os outros direitos que a polis deveria garantir como bem comum não parece, para muitos, colocar em risco a experiência analítica. Ou perder o direito a falar (de si) é um risco apenas na fantasia de muitos psicanalistas, ou o gesto inaugural de Freud precisará ser repetido diariamente, valendo o limite da relação do analista com o desejo. Expressões do tipo “nazistas foram analisados por psicanalistas judeus” nos apontam o tamanho da dimensão narcísica e de alienação que estamos imersos, onde a não atualização da cadeia significante nos coloca à mercê da opressão, de um Creonte onde os furos na imagem são enganosos, onde a margem da dor dá lugar a uma unidade que nos é vendida e a compramos sabendo que estamos nos enganando, anestesiados no gozo imaginário.

A tarefa do sujeito na esfera pública é não apenas lutar por seu direito ao desejo [lutar por seus direitos na lei da cidade e dos deuses], mas lutar por seu direito ao direito de desejar, pois o tirano, agora, não lhe oferece outros direitos, ele determina que não há direitos, há deveres morais. Na clínica, o sintoma nos mostra a posição do sujeito diante do real: entre isso e aquilo, o sintoma enlaça, na esfera pública, o particular do divã e o público, a polis é o espaço do fazer, do gesto a ser vislumbrado. A tradição psicanalítica diz que o inconsciente só há na análise – ali no tempo lógico da transferência – no máximo reconhece-se que aquele sujeito que advém no discurso da análise circula no mundo em suas formas sociais – daí a transformação social possível com a qual se meteria a psicanálise. Temos a oportunidade – no privilégio do divã, na praça, na rua – de escutar esse sujeito borromeanamente circulando no mundo pelas vias de seu sintoma – em experiências de mais ou de menos sofrimento. Da ética da psicanálise é isso que merece ser dito: o que esse sujeito sustenta de seu desejo na esfera pública, de suas escolhas, de suas ações. Com Antígona e com Édipo em Colono vemos que o direito ao desejo é uma batalha permanente no sujeito, porque ser transmitido pelo pai, pela lei simbólica, não é garantia: o direito ao desejo não está mais dado nem mesmo no mais íntimo do divã, e menos ainda na esfera pública, na polis como espaço privilegiado de experiência estética para os sujeitos que a habitam e não apenas como espaço de vivências distraídas, rotineiras e cotidianas. Como lugar do acontecimento trágico de cada um, com o fazer de cada um, onde os nascimentos e as mortes se cruzam incessantemente, é contraponto a uma polis corrompida pelos maus governantes, agredida permanentemente em seu solo.

 Lacan, como mencionei, toma a liberdade como um fantasma e como tal para o inconsciente é inalcançável e sabemos como regimes econômicos e políticos convencem os indivíduos de que ser livre é realizar suas fantasias, vendem suas fantasias e a liberdade passa a ser o direito de comprar o que deseja. Na contramão desse mercado, o limiar da ética da análise é o que o paciente se decide por fazer com sua condição de desejo, não ceder dessa condição de falta a ser, não importando o que fazer: essa ética não se confunde com o direito ao consumo.  E, o Outro bem sabe como convencer o sujeito de que “a palavra é perigosa”, frase fantasmática dita no limite articulável de real e simbólico por supor e organizar a verdade da alienação anunciada. Na alienação, a tática é inscrever nos sujeitos o calar-se, tornar o vacilo um medo, onde falar de modo distinto é proibido. A palavra é proibida por ser perigosa: não há laços abusivos e de restrição de direitos e liberdade, que não se inicie nesse fantasma da “palavra é perigosa”, antes sujeitos são calados, depois submetidos e submissos, abusados, torturados [a tortura não é fazer falar, a tortura é fazer calar aqueles da revolta]. Associar livre é perigoso e há que ser proibido. A psicanálise continua subversiva e necessária (e não utilitária), e precisamos repetir o gesto contraditório de Freud de “deixar falar”, nosso gesto político na esfera pública em não ceder do direito de desejar, conforme  Lacan (1959/1960) sobre a ética na psicanálise.

Referências bibliográficas

BERADT, C. Sonhos no terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. SP: Três Estrelas, ed. 2017.

FIALHO, M. do C.  Édipo em colono: o testamento poético de Sófocles. HVMANITAS — Vol. XLVIII (1996) / p. 29-60. https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas48/04_Fialho.pdf. Acessado em 15 de novembro de 2018.

CHECCIA, M. A. Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia. Pós-graduação/USP.2012. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-05072012-112606/pt-br.php.365 p.

LACAN, J. Seminário, livro 6. O desejo (1958/1959) [http://staferla.free.fr/].

______. Seminário, livro 7. A ética (1959/1960) [http://staferla.free.fr/].

______. Seminário, livro 11. Os fundamentos (1964) [http://staferla.free.fr/]..

______. Direção de tratamento e seus princípios de poder (1958/1998). Escritos.

SÓFOCLES.A trilogia tebana – Édipo Rei / Édipo em Colono / Antígona. Tradução do grego, introdução e notas de MÁRIO DA GAMA KURY. 15ª reimpressão. Jorge Zahar Editor.

Espaço sobre escritas 2019

A escrita haeresie (R S I)

Coordenadora: Aline Accioly Sieiro

Membro – Associado Hæresis

alinesieiro@gmail.com

No primeiro ano do espaço sobre escritas, percorremos um caminho que teve como norte “fazer traço no engodo de nossa intenção de escrever, torná-la uma experiência de subjetivação buscando investigar o “que significa escrever”: passar a outra coisa, passar pelo escrito” (Souza, 2018, Hæresis Associação de Psicanálise). Estudamos a estrutura das escritas apoiadas na consistência de palavras, em suas tendências de satisfação pulsional via recobrimento imaginário. A escrita psíquica, ou melhor, a escrita do trajeto pulsional de um sujeito é particular, é a “ativação dos traços”(Freud, 1977, p. 589), mas esse traço não é imaginário, não tem equivalência com a imagem.

Sobre as escritas a partir de memórias, entendemos que as escritas de recordações de infância tem seu lugar na psicanálise, mas existe um ponto de passagem dessa escrita para outra escrita. “Não está de modo algum definido que, com a psicanálise, vai se conseguir escrever. Para falar propriamente, isso supõe uma investigação a proposito do que significa escrever para cada um” (Lacan, 1975-76/2005, p.143). Aportamos em uma busca do traço como suporte mínimo do sujeito, traço do escritor, daquele que escreve elidido.

Assim, apresentamos a proposta do Espaço sobre Escritas para 2019, partindo das considerações lacanianas, especialmente a partir dos anos setenta, tempo de formalização da topologia borromena, ensejando que algo do impossível se demonstrasse. A aposta na topologia implica a elaboração de um espaço a partir da noção de vizinhança, suporte de letras, sem imagem, em torno do nada. “Essas letras que fundam a topologia supõe senão o real” (Lacan, sem XXI, p. 107)

A escrita de haeresie, homofonia em francês para as letrinhas RSI – Real, Simbólico e Imaginário, testemunha a ação de uma escolha (Lacan, Sem XXIII, p. 16), ela própria a sulcagem de um trajeto pulsional, “rasura pura de nenhum traço anterior” (Lacan, Lituraterra, p.), uma rasura que se escreve como traço, mas não cessa de não se ler. “Só a escrita faz três”. (sem 21 p. 93)

Se a escrita constitui ao mesmo tempo que revela o sujeito, nosso objetivo para esse ano é estudar os caminhos por onde Lacan propôs a escrita como ato de eRRancia do sujeito, enodação de um pedido, uma recusa e uma oferta (“Peço que recuses o que te ofereço porque não é isso”), onde o isso é tocado em pedaços, “pedaços de real”. (sem 23)

Ao longo do ano, vamos trabalhar com a leitura de textos sobre a temática e com a produção escrita dos participantes do espaço. Essa produção escrita pode ser sobre qualquer área ou temática que leva em conta a psicanálise lacaniana, pois o que buscamos é colocar em ação o desafio de debruçar-se sobre o ato de escrita, para além de sua materialidade e/ou gênero textual, em sua experiência pulsional.  

Percurso proposto:

  1. Escrita e invenção; Escrevendo o indizível; Escrita, ato de invenção em torno do real.
  2. Por uma clínica psicanalítica do escrito; Tradução, transcrição e transliteração.
  3. Escrita e traço unário
  4. A função do escrito
  5. Alingua é Real, o Real é três
  6. Escrita e Real, Sulcagem e Cifra

Datas e horários

Serão dez encontros durante o ano de 2019, realizados uma vez por mês, com três horas de duração, aos sábados a tarde, conforme datas abaixo:

Marco – 16

Abril – 13

Maio – 11

Junho – 08

Julho – 06

Agosto – 03

Setembro – 14

Outubro – 05

Novembro – 09

Dezembro – 07

Cossich, Tai. (2017) A espetacular clínica da monga apresenta Caso Original

Cossich, Tai. (2017) A espetacular clínica da monga apresenta Caso Original

Referências Bibliográficas

Rinaldi, D. (2006). Escrita e invenção.

Assenço, R. & Vorcaro, A. (2018). Escrevendo o indizível.

Allouch, J. (1995) Letra a Letra.

Freud, S. (1900). A interpretação dos sonhos.

Lacan, J. (1966-67). O Seminário, Livro 14 – A Lógica da Fantasia.

Lacan, J. (1972-73). O Seminário, Livro 20 –  Mais, Ainda.

Lacan, J. (1974-75). O Seminário, Livro 21 – Os não tolos erram.

Lacan, J. (1975-76). O Seminário, Livro 23 – O sinthoma.

Souza, C. R. (2018) Escrita, ato de invenção em torno do real.

Reuniões 2019 – Conceitos na psicanálise de Jacques Lacan

Proponente: Cirlana Rodrigues (Membro-Associado Haeresis)


Em Linguística, “conceito” é ideia abstrata compreendida nos vocábulos de uma língua, construída para caracterizar as qualidades de uma classe, de seres ou de entidades imateriais. Jacques Lacan, ao longo de Seminários e Escritos, trabalhou em torno de formulações lógicas e complexas sobre os fundamentos da Psicanálise sem caracterizar e/ou qualificar esses fundamentos a partir de reflexões cognitivas: tratava-se, para o psicanalista, de colocar na linguagem os arranjos da clínica. Assim, “conceito”, em psicanálise, merece ser lido como “lógica”, como o encadeamento dos significantes que dizem sobre a experiência analítica, suas transformações e atualizações ao longo da cadeia epistemológica da psicanálise. Não haveria uma definição totalizante neste ou naquele seminário, neste ou naquele escrito, na obra de Jacques Lacan, ou um recorte que abarcasse todos os aspectos de determinado conceito e nem suas possibilidades de emprego dentro da experiência analítica. Diante disso, a proposta é dialogar sobre a gênese e as transformações de conceitos da psicanálise de Jacques Lacan a cada reunião partindo de recortes discursivos. Esse recorte não é sem consequências e não é sem riscos para a proposição onde dois aspectos dão a direção: 1) a experiência da psicanálise não é uma experiência intelectual, mas uma experiência clínica onde cada conceito é construído para localizar na epistemologia do campo discursivo da psicanálise a experiência de análise respondendo às implicações de haver inconsciente; falar em ‘conceitos e noções’ , em psicanálise, é falar sobre o que se passa nas análises; 2) será fundamental para as elaborações em torno do que se propõe, as interpolações dos participantes sobre cada conceito.

As reuniões serão mensais, com duração de três horas, aos sábados, das 13:30h às 16:30h. Valor: 120,00. Será sugerido, antecipadamente, a leitura do recorte a ser trabalhado. Solicitação de participação será apreciada pela proponente das Reuniões. Entrar em contato pelo e-mail cirlanarodrigues@gmail.com

Cronograma – Data – Conceito
23 de Fevereiro de 2019 – Estádio do Espelho
23 de Março de 2019 – Imaginário 
20 de Abril de 2019 – Linguagem e simbólico
25 de Maio de 2019 – Sujeito / Outro
22 de Junho de 2019 – Tempo lógico
20 de Julho de 2019 – Dialética: desejo e demanda
24 de Agosto de 2019 – Falo / Nome-do-pai
21 de Setembro de 2019 – Real
26 de Outubro de 2019 – Alienação, afânise e separação
23 de Novembro de 2019 – Objeto a
14 de Dezembro de 2019 – Sexuação

Espaço Hæresis sobre crianças e adolescentes 2019

Espaço Haeresis sobre crianças e adolescentes 2019 – O brincar, o desenho e o diálogo: das invenções da criança às in(ter)venções do analista / Coordenadora do Espaço: Cirlana Rodrigues (Membro-Associado Haeresis)

O Espaço Haeresis sobre crianças e adolescentes irá trabalhar em torno das ‘linguagens’ da criança na experiência analítica. A proposta é colocar na cena clínica três possibilidades de intervenções na clínica psicanalítica com a criança a partir das invenções (si) que a criança nos oferece: o brincar, o desenho e o diálogo. O trabalho será feito em torno de noções não psicologizantes, não pedagógicas e não biologizantes desses elementos que convergem com fundamentos da clínica psicanalítica com a criança e a constituição do sujeito. Recortes da experiência clínica com crianças serão enlaçados às proposições de Sigmund Freud, Jacques Lacan, Edith Derdik, Cláudia Lemos, Angela Vorcaro. Ainda, iremos a autores como Donold Winnicott, Melanie Klein, Françoise Dolto, Julieta Jerusalinsky na extensão dessas invenções da criança na clínica: suas soluções para seus impasses constitutivos, suas modalidades de sofrimento que atravessam sua condição de vir-a-ser sujeito do desejo, seus arranjos e desarranjos lógicos e topológicos frente a seu sintoma, frente a ser sintoma.

Os encontros serão mensais, com duração de três horas, aos sábados, das 13:30h às 16:30h. Valor: 120,00. Solicitação de participação será apreciada pela coordenadora do Espaço. Entrar em contato pelo e-mail Cirlanarodrigues@gmail.com
Cronograma-Data-Tema: 
30/03/ 2019 – Considerações sobre a Clínica Psicanalítica com a criança 
27/04/ 2019 – O brincar
18/05/2019 – O brincar
29/06/ 2019 – O desenho
17/08/ 2019 – O desenho
28/ 09/ 2019 – O diálogo
19/10/ 2019 – O diálogo
30/11/ 2019 – Das invenções da criança às in(ter)venções do analista

A clínica e a Psicose na Psicanálise de Jacques Lacan

Reuniões 2019 – A Clínica e a Psicose na Psicanálise de Jacques Lacan
EM SÃO PAULO

Proponente: Maria Tereza Perez
(Membro-associado Haeresis)

Em alinhamento com a proposta de “Reuniões”, como um dos dispositivos para fazer operar a transmissão da Psicanálise, a Haeresis, também ressalta, neste ano, o esclarecimento da noção de conceito, enquanto aquilo que deve ser lido como lógica. Lacan, ao longo de sua trajetória e ensino, se dedicou a inaugurar e reinaugurar, na séria continuidade da escrita e pesquisa em Psicanálise, conceitos sobre a clínica psicanalítica ante a psicose.
Se Freud já acena com estratégias de solução para a psicose, especialmente através do conceito de delírio, Lacan empreende com coragem e fôlego para fundar as lógicas que imprimem o campo da psicose na história, diante daquele que se ocupa de psicanalisar, ou seja, de subverter o dito classificatório, de desmantelar a ciência e a modernidade enquanto mandantes do gozo desregrado.
De “A Bolsa ou a Vida” ao universo cósmico Joyceano em Finnegans Wake, Lacan empreende uma revisão da estrutura da linguagem para discutir o inconsciente e gozo através de muita conceituação-lógica. Os nós, real em topologia borromeana, dão a direção e o tom dos des-caminhos da clínica psicanalítica, em seus encontros com os gênios, nas amarrações da vida. 
Diante do extenso exercício lacaniano, o objetivo é se debruçar e conversar sobre a como cada conceito foi tomando corpo e se atualizando conforme a clínica promovia matéria. Nesse sentido, será através dos recortes e de relatos clínicos, bem como das necessárias considerações dos participantes que a atividade poderá acontecer.

As reuniões serão mensais, com duração de três horas, às terças, das 19:00h às 22:00h Investimento: 120,00. Será sugerido, antecipadamente, a leitura do recorte textual a ser trabalhado. Solicitação de participação será apreciada pela proponente das Reuniões. Entrar em contato pelo e-mail maitepsico4@gmail.com


Cronograma
Datas Temática
26/02 Abordagem freudiana das psicoses (perda de realidade e reconstrução do mundo)
26/03 Abordagem Lacaniana das soluções nas psicoses: desencadeamento e estabilização
23/04 A Linguagem, estrutura e mais-além
28/05 Mais-além: Lalíngua, letra, escrita 
25/06 Percurso paradigmático do Gozo em Lacan
23/07 Foraclusão, do Nome-do-pai aos Nomes-do pai
27/08 O que temos a enfrentar com a topologia (NÓS)
24/09 Suplência e estabilização? Metáfora/Ato/Obra.
22/10 O autor e sua obra: Joyce, Mutarelli, Arthur Bispo do Rosário. Sujeito e Savoir-fare.
26/11 O autor e sua obra: Joyce, Mutarelli, Arthur Bispo do Rosário. Sujeito e Savoir-fare.

“Psicanálise sem Édipo?”, enquanto DORA FAZ A RODA GIRAR…E GOZA!

“Psicanálise sem Édipo?”, enquanto DORA FAZ A RODA GIRAR…E GOZA!

Por Cirlana Rodrigues

Associação Hæresis de Psicanálise

Introdução 

“Psicanálise sem Édipo?” é a questão-efeito do livro dos psicanalistas Philippe Van Haute e Tomas Geyskens (Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan, Autêntica, 2016, 205p. Tradução de Mariana Pimentel Fischer). Com vasta produção na área de estudos que convergem psicanálise, filosofia e antropologia, portanto, convergem, o pathos, os processos lógicos de reflexão e compreensão da vida e da existência do homem, os autores, nessa obra, propõem uma clínica construída a partir dessa convergência. Primeiro, convergência não é a proposição de um novo campo discursivo que contemplaria a experiência de vida e seus modos de expressão cultural e de sofrimento: é trabalhar em torno dos pontos de tensão impostos por esses aspectos e, como veremos, são nos pontos de tensão na obra de Sigmund Freud o locus desse trabalho. Segundo, “clínica” se refere à tríade da escuta dessa experiência naquilo que tem de universal, de singular e de particular, de cada sujeito. Noção essa que na antropologia clínica iria além de definições estruturais e psicossexuais da psicanálise, discursivas da filosofia, enunciativas e gramaticais dos estudos da linguagem, e sociológicas, entre tantas definições sobre o que é ser sujeito: trata-se exatamente da não possibilidade de definições, da não predicação imaginária de indivíduos e simbólica de sujeitos. O que se é se aproximaria ali onde essas predicações se esgotariam.

Nesses termos, a referida obra é atual, pois estes tempos nos convocam a sair da comodidade de compreender a existência humana por meio de uma psicopatologia fundamental que se manifestaria de modos diferentes, porém que tendem sempre à explicação do que acontece, deixando de lado a narrativa e descrição dessa existência, tempos que nos convocam a não perder de vista que o ‘sujeito’ de nosso ainda insistente divã é o mesmo que caminha pelas ruas e para qualquer lado, tempos que nos convocam diante do desabamento da ordenação política e social, onde o político perde toda sua função de representatividade e o social é um campo minado de forçada homogeneidade, são tempos em que a sexualidade perde sua segurança como conceito epistemológico dentro dos campos e passa a ser ato de sujeitos imbuídos na defesa de seu desejo e do corpo que supõem que têm, resistindo não mais a algo como uma repressão, nosso tempo é um tempo de opressão: no primeiro deixa-se no sujeito a inscrição de seu desejo a ser reprimido, no segundo busca-se o apagamento dessa condição de desejar. No que concerne ao campo psicanalítico, nos parece mais produtivo escutar tudo isso (tal como fizera Freud e Lacan) do que o trabalho de defesa do campo psicanalítico, na medida em que esses “novos sujeitos” colocam em xeque os fundamentos de uma psicanálise fundamental, aplicável, normativa e, porque não, lida ainda pelo leitor/comentador do século XIX e do século XX.

Van Haute e GeysKens (2016), por meio de uma leitura cuidadosa e minuciosa dos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, vão localizar, na tradição epistemológica da psicanálise, os argumentos para a tese de uma “antropologia clínica”, ou a “patoanálise”, esta depreendida da leitura patoanalítica feita por Jacques Schotte, em Szondi avec Freud (1990) que se sustenta na desconstrução que Freud faz à distinção entre normalidade e patologia, por meio do princípio do cristal, mostrando que as diferentes formas de manifestações patológicas na verdade correspondem a diferentes manifestações de disposições comuns a todos os seres humanos. Os autores vão defender essa tese lançando mão das tensões no discurso freudiano e lacaniano, nisso que foi sendo elaborando a partir da resistência por meio do desejo pelo desejo insatisfeito na histeria, de não se deixar encerrar a questão do sofrimento humano nesta ou naquela resposta normativa e cultural,  esta escrita na psicanálise pela noção de “Complexo de Édipo”: regulação do desejo, regulação do sofrimento, regulação das possibilidades das experiências em torno dessas questões, imposição de respostas à partilha dos sexos, regulação do “quem somos” e, ainda, regulação da própria técnica psicanalítica e de seus objetivos, por vezes de ajustamento por meio, por exemplo, de recursos de se analisar fantasias a partir dessa noção, de compreender a transferência como revivência dessa identificação…

Neste ponto, vale chamar a atenção do leitor da obra aqui resenhada para o número de notas de rodapé: fazem função de costurar a tese à letra freudiana e lacaniana. Van Haute e GeysKens (2016) escrevem o livro e vão nos mostrando os pontos de tensões localizados no textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, fazendo uma cartografia entre o conflito iniciado no encontro de Freud com Dora, a entrada em cena do velho Édipo-Rei, as investigações de Jacques Lacan que, mesmo pelas vias estruturais e simbólicas, ainda não se desvencilha de uma predicação, passando pelas proposições dos quatro discursos, para tão somente fazer ver o sexo, a sexualidade, o desejo, o pathos nas fórmulas da sexuação. A interpretação que os autores fazem dos textos freudianos e lacanianos não pode ser vista como o encobrimento desses textos com sentidos que os adequariam à suas tese. Interpretar, no caso, é fazer perpetuar essa tensão de Freud e Lacan, sempre insatisfeitos com as respostas prontas e que encerrariam a problemática do pathos na experiência humana. Tal como “as histéricas de Freud”, é preciso não se satisfazer com a resposta.

A pergunta “Psicanálise sem Édipo?” não é feita pelos autores ao longo do livro, é inferida ante a possibilidade deixada por Freud em seu trabalho com as histéricas. Cabe ao leitor fazer como os autores, respondê-la levando-se em conta nossa ética como psicanalistas que passa por compreender a experiência subjetiva como resposta ao real, invenções ante aquilo que seria, de fato, o universal humano: a não possibilidade de completude, isso que nos acomete de modo impressionante e que não conseguimos nomear.

O livro é dividido em uma introdução, seguida de oito capítulos, a conclusão e as referências. Destaque para essa estrutura que se repete, onde cada um desses elementos responde por um tema em torno da proposição maior do livro: as noções e questões epistemológicas fundamentais à antropologia clínica. Podemos destacar as temáticas que perpassam toda a obra: a “disposição orgânica” para a polimorfia sexual, cuja saída histérica é o conflito em relação à bissexualidade e a repulsa ao sexo, repulsa como resistência à posição subjetiva de objeto de troca nas estruturas patriarcais, nossos sintomas, nossa psicopatologia como exageros desses conflitos; a relação estabelecida entre histeria, neurose obsessiva e paranoia com construções culturais e sociais como a literatura, religião e a filosofia, onde se vê como os elementos lógicos desses modos de experiência dos sujeitos também organizam essas expressões culturais; a compreensão da psicopatologia onde o sofrimento subjetivo é a expressão de modo exagerado daquilo que é comum a todos nós, onde sintomas delineiam os traços caricaturais de cada um de nós e, desse modo, não podem ser compreendidos fora dessa experiência, fora dessa antropologia [clínica]; em relação a isso, como pensar uma metapsicologia que não explique esse sofrimento por meio de noções normativas, deterministas que tendem à superação e ao apagamento, à adequação desse que sofre, correção de seus traços caricaturais?; como localizar isso nas manifestações contemporâneas de arte, de pathos, de sexualidade? Os autores vão nos mostrar o equívoco que foi, e ainda é, para a psicanálise em se tomar o “Complexo de Édipo” como determinante da patologia, como normativo da sexualidade e das identificações e aquilo a ser tratado. Essa visada edipiana sobre de que sofrem as pessoas, sobre seus conflitos em existir neste mundo, retira do pathos sua lógica de paixão, de excesso e exagero, de afetos, reduzindo o sofrimento a assujeitamento, algo que poderia ser apagado, curado, corrigido.

 

Cartografia da obra

 Passamos a discorrer sobre o modo como Van Haute e GeysKens (2016) desenvolvem sua tese sobre a proposição de uma antropologia clínica.

Na Introdução – Uma antropologia clínica da histeria/A histeria como um problema filosófico, os autores argumentam que a histeria, interesse da psicanálise, nos leva a confrontar questões sobre a existência humana também de interesse da antropologia e da filosofia. Os fundamentos psicanalíticos sobre a histeria e o que esta coloca em pauta serão retomados como aquilo que concerne a toda a experiência e existência humana e não apenas a um quadro clínico patológico. Esses fundamentos serão perseguidos nos trabalhos de Freud e Lacan, onde para o primeiro a histeria (o discurso da histérica) tomou aspecto fundador por distanciar a psicanálise da perspectiva neurológica, colocando a reflexão filosófica em torno da relação corpo, subjetividade, sexualidade, cultura e sintomas. São centrais os textos de Sigmund Freud Fragmentos da análise de um caso de histeria (o caso Dora, 1905a), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905b), Chistes e sua relação com o inconsciente (1905c), Um caso de neurose obsessiva (o caso do Homem dos Ratos, 1909). Uma “Psicanálise sem Édipo?” será elaborada em torno do texto Fragmento da análise de um caso de histeria (1905a) e do texto Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina (1920), trabalhos onde se inscrevem a tensão freudiana ante a disposição humana e a não normativividade sobre o desejo, e cujo desenvolvimento caminha para a relação com os modos de expressão dessa tensão: Freud não  consegue impor, pela resistência própria da histeria, a determinação edipiana na análise tanto de Dora como da Jovem Homossexual, essa determinação aparece e serve bem ao Homem dos Ratos.

Os autores destacam o que estará em jogo ao longo da obra, na proposição da antropologia clínica: a constitutiva relação psicanálise e histeria; o próprio método da psicanálise e seu inaceitável potencial de cura (não se cura o sujeito de si mesmo e nem de sua existência); uma problemática que nos parece das mais importantes e que Freud, nos vestígios iniciais de uma patoanalítica, rechaçou e que diz respeito à distinção entre normalidade e patologia, pois o pathos é o exagero caricatural do que é comum a todos os humanos e tem a ver com cada um; nessa mesma importância, a distância necessária entre a patoanálise e a psicologia desenvolvimentista, onde a patologia seria entendida como um distúrbio do desenvolvimento; essa psicogênese foi sustentada pela teorização de Freud em torno do Mito de Sófocles, o Édipo-Rei, onde passar pelas questões edipianas seria o meio para uma vida adulta saudável e resolver conflitos seria resolver esse complexo edipiano:  o problema é a carga normativa e patológica que a leitura freudiana desse mito carrega.

Van Haute e GeysKens (2016) nos deixam, nessa Introdução, três proposições que não se esgotam em sua obra, mas que inscrevem um campo importante em elaboração. A saber: i) “afirmar que neuroses são expressões excessivas de disposições comuns a todos os seres humanos significa também dizer que seus equivalentes culturais são fenômenos antropológicos fundados na vida pulsional humana” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.25); ii) “a possibilidade e a importância de uma metapsicologia psicanalítica não edipiana” (Van Haute e GeysKens, 2016, p. 26) e; iii) “a importância filosófica da psicanálise talvez esteja (e especialmente?) em outro lugar [que não reduzida à noção de inconsciente e sexualidade]. […] A originalidade filosófica do trabalho de Freud (e da psicanálise, por extensão?) reside na centralidade do princípio do cristal e na consectária revisão fundamental da relação entre normalidade, cultura, e patologia” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.29). Sobre esse encontro entre psico, patologia e cultura não se trata de um determinismo, pois isso seria o mesmo trabalho da determinação psicogência pensada na metapsicologia edipiana, como veremos.

A partir disso, os autores começam a cerzir o percurso de elaboração da patoanalítica.

No Capítulo 1 – Entre trauma e disposição /A específica etiologia da histeria nos trabalhos iniciais de Freud, Van Haute e GeysKens (2016) nos mostram como, na tradição psicanalítica, é um equívoco o mito de que o trauma real, na teoria da sedução, foi substituído por uma fantasia edipiana, na etiologia da histeria, pois isso esconde as tensões produtivas na teoria freudiana das neuroses no que concerne às relações entre fatores constitutivos [disposições inata] e acidentais [experiências de vida]. É possível creditar aos autores a ênfase de que essa tensão é permanente na história do campo psicanalítico. Para eles, Freud desenvolveu a patoanálise da histeria, uma psicanálise sem Édipo e que a análise da histeria nos mostra como as manifestações psicopatológicas dizem de disposições comuns a todos os seres humanos, o que foi escondido em nome de uma psicanálise com Édipo.

De início, destaca-se que a histeria não é uma condição patológica, essa disposição é comum a todos os seres humanos. Nos seria comum: a excessiva sensibilidade corporal, onde o corpo é parte dos acontecimentos, a questão da bissexualidade e a tendência a rechaçar o prazer sexual (uma espécie de repulsa ao sexo em que a histérica é usada como objeto, assim funciona como uma resistência, mas também, é uma resistência aos efeitos da paixão, antevendo aí o que Jacques Lacan irá constatar sobre a impossibilidade de se ter o objeto de amor) e a propensão para os devaneios e sonhos ‘acordados’, esta como o recurso da bela narrativa na histeria, assim narramos nosso sofrimento. Da teoria da sedução, nos Estudos sobre a Histeria (1985) à neurose obsessiva do Homem dos Ratos, brinquedinho sexual de suas babás, Freud não substitui o trauma pelo Édipo, mas fez ver que, conforme os autores, “Diferentes experiências de confronto com a sexualidade são determinadas por diversas disposições” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.47). Todavia, continuam os autores a nos mostrar que a teoria do trauma não sustenta a proposição de uma antropologia clínica.

De fato, o fundamental nesse capítulo é que Van Haute e GeysKens (2016), também lendo o revisado texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905b), revisado por Freud até alcançar um texto sobre o desenvolvimento edipiano e psicossexual, modos de normatizar o que ele mesmo havia constatado – a polimorfia sexual de todos nós -, delineiam as questões universais colocadas pela histeria à psicanálise, antropologia e filosofia, e que dizem respeito às escolhas de objetos e identidades sexuais que são fundamentadas no encontro entre a disposição universal do ser humano, o problema da bissexualidade e multiplicidade original do desejo e seu recalque que tomam dimensão caricatural e de exagero na histeria.

No Capítulo 2 – Dora/Sintoma, trauma e fantasia na análise de Dora,  Van Haute e GeysKens (2016) situam o texto de Freud Fragmentos da análise de um caso de histeria (1905a) como o caso clínico da patoanálise, caso onde as referências ao Édipo são marginais, onde os autores concluem que o Édipo, a repressão do desejo é apenas um sintoma reativo, há muito mais em cena no jogo amoroso entre Dora, o Sr. K, seu pai e a Sra. K. Uma leitura edipiana tendenciosa apaga o fato de que Dora, seu trauma sexual, foi antes um fato de assédio sexual (pensando na cena do lago) e que Dora vai denunciar, pela deflagração de seus sintomas, esse assédio.

Na bela narrativa que fazem do texto freudiano, os autores nos mostram a dinâmica libidinal e sexual de Dora e como sua repulsa ao sexo, ao órgão sexual masculino não determina a escolha sexual, que o trauma, os sintomas e as fantasias de Dora não necessitam de Édipo para serem compreendidos, seus sentidos não são dados pelo desejo ao pai que precisa ser reprimido. O Édipo, no romance Dora, é mais um tema e não sua explicação. Não é por causa de um desvelamento de um ‘recalque orgânico’ a ser interpretado por Freud que Dora interrompe o tratamento (pois, o caso na verdade são fragmentos). Segundo os autores, essa interrupção foi por causa da “inabilidade [de Freud] para realmente compreender a importância da ligação homossexual de Dora com Frau K.” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.65). Freud mesmo reconhece, nesse texto, a predisposição à bissexualidade como um fator determinante na histeria, tese central nas teorias freudianas sobre a sexualidade que têm o mérito de sempre ir na direção oposta de toda e qualquer definição natural sobre a sexualidade, o que no mínimo é resultante do conflito entre uma disposição e a cultura.

Na sequência, os autores entram na dinâmica da histeria, seu investimento libidinal e suas escolhas sexuais, ante a constatação dessa bissexualidade. Vale um parêntese para dizer que esse fator bissexual, como elemento discursivo, se sustenta ainda na diferença sexual orgânica que em si é uma determinação cultural: homens são os que têm pênis e mulheres são as que não têm pênis e, ainda mais, basta ver que no significante “pênis” não há nada que o ligue ao órgão sexual que representa, trata-se de uma convenção social e cultural, o masculino e o feminino, como alteridade, se distancia desse nascimento naturalizado, porém não deixa de ser uma lei. Sobre essa dinâmica da histeria, passam a ser sobre ela todas as elaborações seguintes, tanto em Freud, como aquelas que os autores vão mostrar na leitura do texto sobre a Jovem Homossexual, como em Jacques Lacan, onde veremos a recusa histérica como resistência a ser objeto de troca nas estruturas elementares de parentesco, seu amor como amor cortês, reconhecendo a indisponibilidade do objeto de amor como posse, o discurso histérico como aquele que enlaça o mestre e a sexuação, lugar de um gozo Outro, gozo feminino como existência ali fora da linguagem, portanto fora da normatização imaginária e simbólica. Os autores concluem que os desejos de Dora são desejos não edipianos, pois afinal o amor de Dora não era pelo pai: “O poder do desejo sexual, da fixação oral, da inclinação bissexual e da repulsa ao sexo são fatores libidinais constitutivamente determinados que estabelecem o destino de Dora como uma disposição, isto é, como um grupo de forças que têm o potencial de se expressar em uma sintomatologia histérica intensa, mas podem também ser sublimados em uma conversão religiosa, militância feminina ou prazer literário. Sublimações que são apenas anunciadas de uma maneira caricata em sintomas histéricos” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.69).

No Capítulo 3 – Do devaneio ao romance/sobre a fantasia histérica e a ficção literária, Van Haute e GeysKens (2016) trabalham em torno da proposição de que há, nas manifestações culturais, a mesma ‘disposição’ e organização das estruturas psíquicas. De modo específico, mostram como a ficção literária, o romance tal qual Freud o conheceu, tem o mesmo funcionamento lógico que os devaneios e as fantasias histéricas. Aqui, importante destacar dois pontos: não se trata de analisar o psiquismo do autor de um romance e menos ainda de patologizar as produções culturais humanas, e que a psicanálise, por essa relação indissociável que a antropologia clínica quer sustentar entre patologia e cultura, tem uma alma literária: a narrativa psicanalítica é uma narrativa histérica, um romance onde sujeitos alocam seu sofrimento, suas paixões, seus exageros. Os modos de cultura estão do mesmo lado que os modos de pathos, na existência humana: encontro que impede determinações únicas, limitações, definições e resistem aos modos de controle do desejo. Sobre isso, lembramos que alguns modos de cultura podem atuar no sentido contrário disso, como determinado cinema que tende a nos dizer o que desejamos e, mais ainda, nos oferecem esse objeto de desejo, como sendo possível encontrá-lo.

Os autores reforçam a importância de se compreender como Freud estabelece a relação entre patologia e realizações culturais, a partir do fato de que a histeria e seus elementos não se manifestam apenas em termos psicopatológicos e, ainda, que a histeria não é um privilégio feminino. O fantasiar histérico produz romances e, sobre isso, vale trazer a citação que os autores fazem de Freud, para mostrar o núcleo argumentativo desse capítulo três, feita em Nota de Rodapé, à página 73. Eis o que diz Freud (1913a, p.73, Totem e Tabu): “As neuroses, por um lado, apresentam semelhanças notáveis e de longo alcance com as grandes instituições sociais, a arte, a religião e a filosofia. Mas, por outro lado, parecem ser distorções delas. Poder-se-ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma obra de arte, que uma neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que um delírio paranoico é a caricatura de um sistema filosófico”. Trata-se de uma relação estética entre as patologias e as modalidades de expressão cultural.

Com isso, os autores discorrem sobre como os sintomas histéricos, o fantasiar, os devaneios, a sexualidade, os temas edipianos, o corpo sintomático estruturam e tematizam romances a partir de textos freudianos como o belo “O poeta e o fantasiar”, para mostrar que escritores bem podem ser bons diagnosticadores da civilização e que sintomas narram no corpo das histérica a psicanálise e, porque não, a psicanálise como um romance, um devaneio de um escritor, no caso de Freud: a forma produz prazer, um prazer libidinal, como nos mostram as desfigurações que crianças e psicóticos fazem com as palavras e há um estilo de cada um, no trabalho com essa linguagem que dá prazer.

A conclusão dos autores é a de que romances podem ser tomados como sublimação da histeria, de seus sintomas reativos, da bissexualidade e mostram a tensa relação entre cultura e patologia que permeia a vida dos seres humanos: “A partir da perspectiva das paixões, não há distinção real ou estrutural entre essas manifestações. […] A distinção entre psicose, neurose e normalidade, que se tornou popular em diagnósticos psicanalíticos, não pode fazer justiça à unidade dinâmica e à complexidade da histeria e de seus componentes psicóticos, neuróticos e poéticos” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.84). Como nos mostrarão ainda os autores, a própria lógica simbólica e estrutural tão cara à psicanálise elaborada por Jacques Lacan em seu retorno a Freud também acaba por estabelecer a diferença que servirá de parâmetros para estruturas e suas manifestações patológicas mediante estruturas não patologizadas como se pensa, por vezes, na neurose, esta como a boa estrutura, enquanto a psicose como a psicopatologia, como a afecção de seres humanos adoecidos: na primeira a metáfora paterna deu certo, na segunda não, uma lógica parecida com a resolução edipiana, a diferença é que no simbólico o sujeito ganha uma distinção de si, nesse encontro com o outro, e não se resume a um igual ao outro.          

No Capítulo 4 – A indiferença de uma lésbica saudável/Bissexualidade versus Complexo de Édipo, Van Haute e GeysKens (2016), depois de Dora como a tensão de Freud ante à difícil adequação da histeria à psicogênese, vão ler     Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina (1920), texto em que Freud vai do complexo de Édipo à bissexualidade: nele, o primeiro psicanalista, para nosso espanto, pois sua intenção era tratar da psicogênese da homossexualidade, ou seja explicar pela normatização edipiana desejos e escolhas homossexuais, atesta a bissexualidade, disposição comum a todos os seres humanos. Todavia, assim como Dora, a Jovem Homossexual não leva o tratamento adiante pois também vê em Freud seu incômodo deste com suas próprias conclusões.      

Destacamos, nesse capítulo quatro, o esclarecimento dos autores acerca desse universal que vai tomando formas expressivas únicas. Para eles não se trata de pensar em um caráter geral e universal para a metapsicologia que consideraria o parâmetro normativo para histeria e tomaria isso como explicação de fantasias, devaneios inconscientes e alucinações, ao contrário, a proposição da antropologia clínica busca evitar a catástrofe da expansão e generalização do complexo paterno edipiano para a existência e patologias. Segundo os autores: “Não estamos defendendo que a teoria psicanalítica tenha de se limitar ao domínio estrito da patologia e evitar formulações gerais sobre a natureza humana. A psicanálise deveria, entretanto, pensar a natureza humana a partir dos diversos problemas da neurose e sua relação com formas culturais específicas” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.89). Esse tipo de proposição é para colocar luz sobre “problemas comuns a todos os seres humanos” e não para ampliar e generalizar o modo de expressão dessa problemática como comum a toda relação neurose e formas culturais.

Freud busca saber como a Jovem se tornou homossexual. Esse se tornou estabelece a busca de uma causa. Causa que bem poderia ser, na hipótese de Freud, um trauma edipiano, e perguntar se algo é causado é supor aí um problema, o que justifica a busca da causa. Tem-se, nesse ponto da psicanálise, uma tensão importante e que merece enfrentamento, pois o que está em questão é se ser homossexual é uma condição causada, e não uma escolha da Jovem, nos entremeios de sua cultura e sociedade. A leitura que Van Haute e GeysKens (2016) fazem desse texto freudiano é precisa, pois nos mostra que nenhuma escolha sexual é edipiana e que Freud novamente se deparou com isso e, assim, é mesmo impossível negar que a homossexualidade (ou qualquer outra escolha) existe e é uma possiblidade comum a todos os seres humanos. A esforçada análise edipiana feita por Freud não resiste a essa Jovem Homossexual, sintagma que vira um nome na tradição psicanalítica como referente ao modo de como lidar com a diferença sexual.    Nesse ponto de suas elaborações Van Haute e GeysKens (2016) nos trazem uma importante observação acerca de uma possível metapsicologia que não seja explicativa e antecipada, pois “a psicanálise deve colocar de lado suas pretensões psicogênicas e etiológicas: não é tarefa da psicanálise explicar como alguém se torna homossexual, histérico, masoquista ou qualquer outra coisa” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.97). Esse tipo de proposição coloca em xeque qualquer direito a cura pretendido pela psicanálise, pois Dora reage de certo modo à sua experiência traumática porque é histérica, e a Jovem reage à sua experiência traumática porque é homossexual, o trabalho consiste em traçar o caminho libidinal, pulsional que esses sujeitos fazem em suas histórias de vida, em suas escolhas, no seu cotidiano e não em conteúdos e conceitos psicogênicos previamente determinados.

Esse quarto capítulo é encerrado com os autores reafirmando a importância da tensão entre a perspectiva psicogênica e a perspectiva patoanalítica que não deve ser tamponada e nem negada, mas levada à cena do campo psicanalítico, o que é feito pelo psicanalista francês Jacques Lacan em seu notório retorno a Freud. Com Lacan, essa tensão ganhará uma leitura simbólica que se esgotará diante do inalcançável objeto do desejo e a psicanálise ainda corre o risco de uma normatização, agora sob a égide das estruturas da linguagem e seu funcionamento significante. Veremos que Lacan nos mostrará ainda a posição de Dora nos discursos, enganando o mestre (tal como fez com Freud) e, somente depois, como o mais ainda disso, Lacan nos mostrará que o que está em cena na narrativa histérica sobre seu desejo é um gozo como o limite nada garantidor e menos ainda regulador da vida, que chama o sujeito, qualquer um, a se relacionar diretamente com cada ação, com cada desejo onde a linguagem e os sentidos se esgotariam.

No Capítulo 5 – A releitura estruturalista de Dora formulada por Lacan, Van Haute e GeysKens (2016) mostram que o psicanalista francês Jacques Lacan retornou aos pontos de tensão entre a psicogênese e a patoanálise nas elaborações freudianas sobre a histeria: O Caso Dora e da Jovem Homossexual foram decisivos na teoria freudiana e os autores nos mostram que nas elaborações lacanianas também.

Segundo eles, a interpretação estrutural feita por Lacan do Complexo de Édipo é, assim como a psicogênese freudiana, antagônica à patoanálise, como se pode depreender dos textos dos anos de 1950. Ao reler Dora, Lacan desenvolve uma teoria patológica própria e reflete sobre seu significado acerca da existência humana. O que manterá a leitura estruturalista lacaniana na contramão da patoanálise é o fato de que, na perspectiva de Lévi-Strauss, a qual Lacan se filia, trata-se de arranjos de posições de sujeitos determinadas culturalmente: Dora, nesse caso, é um objeto de troca nas estruturas elementares, conforme Van Haute e GeysKens (2016) localizam no seminário a Relação de Objeto, de Lacan, realizado no início dos anos de 1950, onde o autor francês, ao reinterpretar o Édipo freudiano aloca a problemática da histeria em termos de uma posição na estrutura relacional. No caso de Dora, mulher, posição de objeto de troca, pois o homem ao se casar ganha a mulher  de presente e  devolve esse presente com a filha. Essa investigação nas estruturas relacionais, realizada por Lacan, distancia-se também da psicogênese, pois Jacques Lacan “não pretende pensar como o desenvolvimento psicossexual de uma criança pode ser compreendido, quer sim investigar as diferentes posições em uma estrutura relacional, que determina significados e afetos relevantes em nossas vidas. Em outras palavras, o interesse de Lacan não está no desenvolvimento do sujeito, mas em seu lugar em uma estrutura” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.103). São tempos de sujeito do desejo como aquilo que um significante representa para outro significante, são tempos da alteridade, onde essa estrutura simbólica substituiria a disposição orgânica sustentada por Freud.

Ao ler o Caso Dora, é sobre o Complexo de Édipo que Lacan, segundo apontam os autores, irá se debruçar, e não sobre a disposição à bissexualidade: a pergunta, entre outras, é como interpretamos a diferença sexual? Pela presença e ausência do pênis? A diferença anatômica do sexo é uma interpretação do sujeito. Ao colocar em cena o amor, na narrativa histérica dos fragmentos sobre Dora – o que irá retomar posteriormente-, Lacan dirá sobre os primórdios do objeto de desejo, pois o amor, assim como os presentes não devem ter utilidades: eis a infinitude do desejo na histeria.

A leitura de Lacan, ao contrário da feita por Freud, não ignora o apego homossexual na experiência subjetiva de Dora, para mostrar toda a dinâmica psíquica de Dora: esta ama pelo que não pode ter, ama o pai pois ele é impotente. Ao fazer isso, no entanto, Lacan continua dentro da tradição psicanalítica de alocar a histeria na relação com o pai. Tendo em vista que as minúcias desse capítulo esgotam o objetivo de tomá-lo nesta resenha, cabe destacar que é nessa tensão em relação a como Dora tenta ganhar acesso ao seu objeto de desejo que nasce uma das questões fundamentais da psicanálise: “O que é uma mulher?”, questão essa a ser retomada e reformulada adiante, nas elaborações lacanianas. Esse enigma, ainda da feminilidade, é retomado pelo Esquema L, de Lacan, onde os autores vão trabalhar com a identificação de Dora ao pai e sua escolha de objeto, melhor dizendo, como Dora não aceita seu papel estrutural de objeto de troca.

Van Haute e GeysKens (2016) nos mostram a “típica estrutura do desejo histérico”, o desejo pelo desejo insatisfeito, recorrendo ao sonho da Bela Açougueira, que Lacan retoma de Freud, em seu quinto seminário, sobre as formações do inconsciente, dos anos de 1957 e 1958. Vale lembrar que esse mesmo seminário é onde Lacan estrutura os três tempos do Édipo e a metáfora paterna, a lei, o Outro e o falo, versão lacaniana do Édipo freudiano, segundo os autores. Na problemática do desejo de Dora e da Bela Açougueira, cada uma ao seu modo, compartilha com os outros seu objeto de desejo, mas Dora faz sintomas, pois trata-se, para a histeria, de garantir que esse objeto continue insatisfeito.

De modo surpreendente, Van Haute e GeysKens (2016) concluem esse capítulo nos destacando que a reinterpretação estruturalista do Complexo de Édipo para a questão do desejo na histeria, torna essa questão uma problemática feminina, da posição da mulher como objeto [de troca] na orda primeva e, uma normatividade acaba por invadir a relação entre patologia e normalidade, pois “O que é uma mulher? é certamente a expressão da incapacidade de algumas mulheres de reconhecer e assumir seu papel assinalado estruturalmente” (p.125). Assim a histeria continua ainda uma patologia e não um exagero a uma comum problemática humana, afinal todo desejo é insatisfeito. Dora só exagera isso em seu amor pelo que torna o desejo insatisfeito, para não nos deixar esquecer que toda normatividade colide com a antropologia clínica.

No Capítulo 6 – Lacan e a Jovem Homossexual: entre patologia e poesia?, Van Haute e GeysKens (2016) nos lembram que a primazia do Édipo é questionada pelo próprio Freud quando se depara com a Jovem Homossexual. Assim como se passou com Freud, essa Jovem vai colocar à prova o Édipo estruturalista de Jacques Lacan por causa de seu amor cortês à sua dama. É justamente diante disso que Lacan irá sugerir que “existe uma conexão entre a patologia e as formas específicas de expressão cultural” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.128), romance do amor cortês, assim como o romance histérico, trata do vazio na relação de objeto, melhor dizendo, na relação de amor. Diferente de Dora, que ama o pai por não poder lhe dar o que quer, a Jovem Homossexual ama a mulher que não pode dar-lhe o que deseja, depois da rejeição pelo pai. Até aqui, Lacan apenas constata que a histeria possibilita nosso confronto com o que seria um aspecto essencial da existência humana, mas ainda não reconhece que a estrutura histérica se expressa em patologias e em formas culturais, fundamento da patoanálise, da antropologia clínica.

Todavia, com a Jovem,  ele sugere haver uma equivalência entre “o amor platônico da Jovem Homossexual por sua amiga com o amor cortês” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.131). O modo de amor da Jovem é o mesmo expresso pelos menestréis dos séculos XII e XIII: “são modos de elaborar respostas para a mesma problemática universal” (p.132), da falta, do objeto que amamos por ser em falta, irrepresentável: eis o encontro de Jacques Lacan com a patoanálise. Desse ponto em diante do texto, Van Haute e GeysKens (2016) vão fundamentar nas obras seguintes ao final dos anos de 1950 de Lacan, a patoanálise, a possibilidade de uma psicanálise sem Édipo. O que faz essa Jovem Homossexual? Nos deixa claro, ao fazê-lo para o pai, que “o amor transcende todo objeto que pode ser trocado em uma relação amorosa” (p. 132-133), pois é um objeto fora do alcance. Do desejo pelo desejo insatisfeito que gerou a questão-sintoma “O que é uma mulher?”, o gozo feminino entrará no lugar do simbólico gozo fálico, do gozo como reposta à questão universal “O que quer uma mulher?”, reposta ali na existência fora da linguagem, quase como o lançar-se na linha do trem da Jovem, expondo a radicalidade da falta que nos causa.

Para fundamentar a patoanálise, se depreende daí, com Van Haute e GeysKens (2016, p.136) o efeito do caráter irremovível e universal da falta: “patologia e cultura podem ser colocadas em uma relação de continuidade: seres humanos vivem em uma permanente tensão entre esses dois polos”. Nesse ponto, os autores preparam abertamente um fundamento da antropologia clínica: “Tal como afirmamos anteriormente a partir da teoria freudiana, talvez, nesse caso, possamos deixar de pensar em diferentes tipos para passarmos a pensar em termos de diferentes graus. A mesma problemática está em jogo na patologia e na cultura, e ninguém escapa da patologia, do mesmo modo que ninguém escapa da cultura e da literatura. De acordo com esse modelo, então, a sublimação não necessariamente nos liberta da formação de sintomas. Aqui, há apenas espaço para diferenças em termos de graus: o ser humano está suspenso entre patologia e cultura”. Os autores, de uma só vez, colocam em xeque a metapsicologia psicanalítica, na medida em que o pathos é de todos nós,  e noções fundamentais como sublimação perdem sua função libertadora de nossos sintomas, estes ganham ares de caricaturas, exageros de pathos comum.

No Capítulo 7 – Além do Édipo? Van Haute e GeysKens (2016, p.141) vão se posicionar diante da questão-título. Depois de cartografar como o Complexo de Édipo impõe à tradição psicanalítica um “elemento normativo”, vemos que a insistência de Freud para “encaixar os problemas de Dora em uma matriz heterossexual” fez com que ela colocasse fim à análise. Ao fazer isso, ela fez com que o grande psicanalista confrontasse “a inadequação do seu saber e as suas deficiências como psicanalista”. Chegamos aos seminários de Jacques Lacan O avesso da psicanálise (1969-1970) e Mais, ainda (1972-1973), ou o que podemos ler como o acontecimento discursivo dentro da tradição psicanalítica para registro do funeral de Édipo e seu complexo normativo de determinação da sexualidade.

Dora faz os discursos girarem, como mostram os autores no seminário O avesso da psicanálise. Para Lacan, de agora em diante, o Complexo de Édipo é inútil para a clínica, nos informa os autores. Ao tratar dos discursos, Jacques Lacan constatará que esse Complexo não dá conta da relação entre a histérica e o mestre, pois esta ao esperar sempre uma resposta para todas as suas perguntas, outrossim, cria “essa figura do mestre e buscam [busca] seu conselho… até que ele falha” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.143). Dora e a Jovem Homossexual mostraram a Freud o equívoco e a inadequação de sua resposta edipiana ao exagero [do amor] de suas existências, porque sendo portadoras da verdade que o mestre acredita saber, é preciso ver que as configurações patológicas (da histeria) sugerem, conforme a nota de rodapé, onde Van Haute e GeysKens(2016) citam diretamente Lacan (1969-1970, p.101)  “que tudo deve ser requestionado no nível da própria análise, do quanto de saber é preciso para que esse saber possa ser questionado no lugar da verdade”. O Édipo, não permite esse requestionamento.

Jacques Lacan é radical em sua crítica ao Complexo de Édipo (lembremos que ele mesmo tentou sua versão simbólica): trata-se da personificação da figura do mestre e sua castração, mas como um sonho de Freud, de seu desejo infantil. Para Van Haute e GeysKens (2016) haveria uma leitura desfigurada e descontextualizada do mito de Sófocles por parte de Freud, pois isso é dá conta de seus desejos infantis, porque Freud não percebe que ao matar o pai, Édipo, de fato, perde todo o acesso à mãe, ele vai perdendo tudo e, ainda, em sua leitura, Freud apaga por completo o “desejo da mãe”, impondo a ideia do “desejo pela mãe” (basta ler o Mito para ver o desejo de Jocasta). Desse modo, matar o pai significa reconhecer quão grande é esse pai, que precisa ser morto.

O que temos é o rompimento com o falso reconhecimento sobre nossa “impossibilidade de um prazer ilimitado fora da lei”. Van Haute e GeysKens (2016) localizam na questão feita por Lacan, “O que quer uma mulher?” que ela bem poderia querer o pai morto, o prazer ilimitado, o gozo, o real como impossível, o gozo feminino, gozo outro, pois esta é uma questão que ninguém é capaz de responder. Lacan nos mostra, a partir disso, que desejo é uma impossibilidade para os sujeitos e, poderíamos constatar, Mulher é referente àquilo que antes era Dora e, depois, a Jovem Homossexual.

Na sequência desse sétimo capítulo, o trabalho dos autores é mostrar como, no funcionamento dos discursos, em específico dos discursos da histérica e do mestre, esse “pai morto produz o saber sobre a sexualidade desejado pela mulher histérica “ (Van Haute e GeysKens, 2016, p.155) e, ser desejado é ser impossível e isso marca a distinção entre o gozo feminino (gozo Outro) e o gozo fálico, dos tempos do simbólico, porque com o pai morto Dora pode ler e amar (de modo cortês) o que e quem quisesse. Mas, a histérica sabe que seus objetos estão fora de alcance.

É a partir dessa condição de um gozo que não se aloca sob a lei simbólica e nem sobre ideais que contornam todo sujeito histérico que Jacques Lacan, no seminário Mais, Ainda (1972-1973) irá opor o limitado gozo fálico sujeito às leis do simbólico ao gozo feminino que escapa desse simbólico, de toda normatividade e naturalização da vida subjetiva: “buscar em vão uma resposta se refere a quem ela é ou o que poderá se tornar para além da economia fálica [do pai morto, do mestre]” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.159). Dizer o que é ou quem é um sujeito é uma resposta em vão.

Isso permite pensar a patoanálise a partir da elaboração lacaniana, pois a “relação com esse outro gozo ‘feminino’ não apenas determina um modo de compreender a histeria, como também se expressa em formas culturais específicas (mais especificamente aquelas referentes ao misticismo e ao amor cortês)” (Van Haute e GeysKens,2016, p.160). Nem Dora e nem a Jovem se subjugam à égide de Édipo e do falo.

“Além do Édipo?” é uma questão produtiva, nos lança para um trabalho que não se resume em “com ou sem Édipo”, isso depende de como cada um localiza a psicanálise, em seu tempo.

No Capítulo 8 – Retorno a Freud? A patoanálise lacaniana da histeria, Van Haute e GeysKens (2016) inscrevem a possibilidade de uma psicanálise onde sujeito e cultura expressam o universal e que agora não são disposições inatas e nem mesmo estruturas elementares de linguagem, mas a relação de impossibilidade com esse desejo. Aqui, nosso trabalho como sujeito do desejo e nossa cultura se estabelecem como impossíveis de delimitações, de regulações, de unicidades e relações de simetria entre as diferenças. Se existe uma “psicanálise sem Édipo”, ela se fundamenta na leitura dos modos de escolha sexual de Dora, de todos nós, escolhas em torno dessa impossibilidade, mas que localiza o sujeito no lugar exato de sua (Real) ex-sistência: no limite fora da linguagem e o gozo feminino bem seria uma espécie de economia suportável ao sujeito de ser fora da linguagem, fora das disposições e normatividades edipianas ou fálicas.

Freud nos ensina sobre a sexualidade humana que nunca haverá uma ‘normalização’ no processo psicossexual, nossa sexualidade será sempre “desordenada”, complementam Van Haute e GeysKens (2016), nunca é um projeto biológico e, mesmo como um “projeto” de linguagem, ela escapa. Até agora, na tradição psicanalítica, a sexualidade foi apresentada na versão freudiana não biológica, mas edipiana, pela versão lacaniana do simbólico, do falo, do gozo fálico, determinada pela posição dos sujeitos nessa estrutura de linguagem que nos antecede, de onde se depreendeu um avanço ao se constatar não haver relação sexual, o que há é a incompletude. Disso, Jacques Lacan depreende a sexualidade em sua versão como sexuação, onde o que está em cena é dissimetria entre os sexos, o gozo fora da lei, o gozo feminino e feminino não é a mulher como realidade biológica é, desde sempre, a recusa e resistência histérica ao Édipo e ao falo. Isso será elaborado por Jacques Lacan nas denominadas “fórmulas da sexuação”, onde toda a sexualidade, a relação do sujeito com seu desejo, com seu objeto perdido, com o Outro, com o falo e o gozo fálico, se dará em torno dessa condição universal do “feminino”.

Para Van Haute e GeysKens (2016) são dessa formulação lacaniana sobre a sexuação, o que podemos ver como os fundamentos metapsicológicos para uma psicanálise sem Édipo, para a patoanálise, em tensão desde Freud, e que os autores irão propor como a antropologia clínica. A saber: i) as “formulas da sexuação” e o “Gozo Outro/feminino” (resistência ao Gozo do Outro/fálico) encerram a problemática do Complexo do Édipo; ii) a diferença sexual não é uma saída para a mulher que depende da resolução edipiana, mas essa “investigação da mulher e da identidade feminina” é estéril, pela lógica freudiana: “a mulher não pode ser plenamente compreendida nos termos do complexo de Édipo e da castração” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.163).

Sobre as “fórmulas da sexuação”, frente ao limite desta resenha, elas se “referem às diversas posições (masculina e feminina) que o sujeito linguístico assume com relação ao falo e que retomam a tese fundamental de Freud sobre a bissexualidade. De acordo com Lacan, elas se referem à problemática que cada sujeito confronta na medida em que é um ser de linguagem. O sexo biológico não está em pauta, mas as duas posições enunciativas possíveis ainda na linguagem “que o sujeito pode assumir em resposta à diferença sexual e à lei do falo” (Van Haute e GeysKens, 2016, p. 165), assim, ‘masculino e feminino’ não se referem a masculinidade e feminilidade em sentido biológico, pois o masculino (referência biológica) pode aparecer em qualquer uma das posições enunciativas, assim como o feminino (referência biológica): trata-se como cada sujeito enuncia-se sua sexualidade, todavia, para isso, precisa garantir essa escolha no risco da existência fora da linguagem, risco suposto “na tensão estrutural que caracteriza a subjetividade como tal” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.165).

Na alteridade entre as posições “homem e mulher” no quadro de Lacan, sobre as fórmulas da sexuação, vemos que na posição do masculino, o gozo fálico se aloca entre um desejo que é causado por um objeto que está fora da cadeia de significantes (objeto a) e que “tem uma qualidade inumana”, pois gozamos apenas com a pequena parte excitante do corpo do outro, e o “significante sujeita a sexualidade a limites ‘humanos’” (Van Haute e GeysKens, p. 168,2016). Podemos ver isso simplificado no fato de que é a linguagem que determina que “pênis” é de homem e “vagina” é de mulher, para ser mulher precisa ter uma vagina, assim como para se ser homem é preciso ter um pênis. Vemos, porém, na posição do feminino, como esse significante falo não opera, e a falta (efeito do simbólico) não explica essa modalidade outra de gozo, o gozo feminino, que nas palavras de Santa Tereza D’Ávila, tão requisita por Jacques Lacan, é “um deleite que me fez nunca querer parar”  ( apud Van Haute e GeysKens, p.169-170, 2016), que os sujeitos experimentam mas não sabem nada sobre isso que experimentam, pois não cabe na linguagem, o gozo feminino não é articulável na linguagem: é aquilo que o sujeito pode  suportar (o limite) sem desaparecer, para além da ordem simbólica (e de qualquer aproximação com Édipo, pois nada se pode dele saber). Essa é a escolha do sujeito na partilha dos sexos, escolha real. Necessário esclarecer que esse gozo não é naturalizado e que o corpo em cena, o corpo real é aquele ao qual ninguém tem acesso, pois está fora da linguagem, menos ainda tem a ver com o orgânico, por isso o sujeito imagina o corpo que tem.

Essa é a posição do feminino, a mesma que tornará toda resposta à questão “O que quer uma mulher?” um ponto de recomeço, aquela que nos mostra como a identidade, a escolha sexual, a patologia, a cultura e seus exageros atravessam e determinam toda experiência humana e a antropologia sobre isso deve partir dessa condição de um sujeito que suporta ser fora da linguagem, sem desaparecer, que suportaria o não reconhecimento imaginário e simbólico. Isso implica, ainda, a resistência a posições estruturais pré-determinadas e normatizações e disposições inatas como dispositivos de definição de sujeitos, de se definir o que pode uma mulher querer. Seu amor cortês, nesses termos, não é mais em direção a um objeto inacessível, agora o gozo é impossível, pois fora da linguagem o sujeito apenas pode desejar existir.

Na Conclusão – O projeto de uma antropologia psicanalítica em Freud e Lacan, Van Haute e GeysKens (2016) buscam pensar o que significa a psicanálise e seus fundamentos pensando no pathos e na cultura como modos de experiências exageradas de quem somos.

Ainda como um projeto, portanto, os elementos levantados e discutidos ao longo da obra estão colocados a trabalho, na clínica e na cultura contemporânea, a antropologia psicanalítica apresenta vários aspectos, conforme desenvolveram Van Haute e GeysKens (2016, p.181 e seguintes). Consideraremos, na sequência, esses aspectos: a) a originalidade de Freud “sobre a sexualidade  está no fato de que as várias patologias sexuais são pensadas como meros exageros de tendências compartilhadas por todos os seres humanos”; b) Freud, no Caso Dora, nos mostra a importância das “narrativas traumáticas de seus pacientes”; c) a condição bissexual e o conflito com a sexualidade são heranças freudianas para além do Édipo; d) não apenas as patologias expressam nossos elementos constitutivos, nossas disposições, as formas culturais como a literatura também expressa esses mesmos elementos, como a histeria em romances (lembremos de Madame Bovary, de Flaubert); e) todavia, a literatura, nesses termos, não é uma alternativa sublimatória às psicopatologias, pois as duas, “literatura e patologia, têm origem em uma insuperável disposição compartilhada por todos os seres humanos. Lidamos com essa disposição de maneiras diferentes com a patologia e ao criarmos ou apreciarmos obras literárias”, e de arte, de modo geral, assim como outros elementos culturais; f) como vimos, ao longo de toda a obra, o Édipo é uma armadilha, se o tomarmos como determinação do jogo entre nossos desejos e nossas identificações, pois ele inscreve um elemento normativo e regulador a esse jogo; g) Freud continuou a lidar, durante toda sua obra com as tensões causadas pela bissexualidade e a resistência histérica; h) “A patoanálise desfaz a ideia de que a patologia seja, essencialmente, resultado de circunstâncias contingentes que podem interferir ou impossibilitar o desenvolvimento ‘normal’”; i) Lacan coaduna com o projeto de uma antropologia clínica, “pensa a histeria como um exagero de uma característica estrutural do desejo”, porém, mesmo reconhecendo que a “mulher histérica recusa o papel que lhe foi prescrito pelo sistema de parentesco”, esse mesmo sistema reintroduz um elemento normativo no jogo do desejo e das identificações; j) “O humano como um ser situado entre”, na tensão entre a patologia e a cultura, conforme proposição de Jacques Lacan ao tomar o amor cortês como o elemento da cultura que nos mostra a relação da falta com o desejo (e seu objeto); k) O gozo feminino, que não é privilégio de qualquer sexo, mas afeto todos os sexos, “indica claramente que a sexualidade feminina (na verdade, a sexualidade humana como tal) não pode ser compreendida nos termos de uma ordem exclusivamente fálica (simbólica)”, pois “todo ser falante confronta a problemática de um gozo para além do simbólico. A existência humana se realiza, portanto, como uma relação tensa e irresolvível entre ‘o lado do homem’, no qual a referência à castração é central, e ‘o lado da mulher’, que se articula nos termos de um gozo feminino (não fálico); l) para “Além da histeria”, coloca em pauta se a patologização da vida, pela ciência, não viria justamente opor-se ao pressupostos da patoanálise,  pois o homem não seria um animal a ser curado, na medida em que “de acordo com o princípio geral do cristal, toda psicopatologia é um exagero caricatural de uma problemática comum a todos os seres humanos”.

 

Considerações Finais

 

Um aspecto nos parece relevante, para fechar essa resenha, o de que a qualquer tensão entre homem e cultura corre-se para sua resolução normativa, científica e opressora onde – sem a ética como política e relação do sujeito com suas ações – os saberes acabam por corresponder a essa demanda de normalidade e patologização da vida, de enquadramento em categorias clínicas e sociais, em definições e predicações de toda ordem, sempre para dizer a Dora do que se  trata seu desejo, esquecendo que se trata, de fato, de um desejo pelo desejo insatisfeito, de um gozo ali no limite da existência. Considerar uma antropologia psicanalítica, na relação intrínseca entre pathos e cultura, que a psicopatologia são modos de expressão caricaturais, exagerados de  problemáticas comuns a todos nós é, na atualidade, colocar em pauta toda uma clínica que insiste na categorização do sofrimento, no apagamento da narrativa de sujeitos (para além de não mais escutá-los), nos modos de cultura que servem-se desses mesmos elementos de apagamento e de uma espécie de (des)narrativa da vida: essa relação pathos e cultura, na atualidade, apaga a tensão que produziu toda a obra psicanalítica, cala sujeitos, impede desejos e proíbe identificações de toda ordem, não concebem o quantum de não determinações que hoje tomam lugar nas velhas e inviáveis estruturas elementares, pois o elementar está fora dessas estruturas.

São esses, os aspectos que nos colocaram a trabalho nas questões em torno das quais iremos conversar no Espaço Aberto Hæresis de Psicanálise e Filosofia: de Dami Silva, psicólogo, estudante de filosofia e doutorando em Estudos da Linguagem (ILEEL/UFU): Se podemos dizer que os sintomas histéricos falam para aqueles que querem escutar, qual questão a histeria colocaria para uma filosofia que é tão avessa à escuta, e qual questão a filosofia faria para a psicanálise tão afeita a uma escuta sensível? E de Cirlana Rodrigues, psicanalista membro-associado Hæresis: As caricaturas da dor: problemas atuais que a histeria coloca sobre as modalidades do pathos como excesso.

Dora colocando a psicanálise a trabalho, fazendo essa roda girar e gozando.

 

Referência Bibliográfica: Van Haute, P. e Geyskens, T. Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, 205p.(Tradução de Mariana Pimentel

Atividade aberta Hæresis Espaço de Psicanálise e Filosofia

Na agenda: Atividade Aberta Hæresis Espaço de psicanálise e filosofia

Data: 08/06/2017 – Horário: 19:00 h

(Breve outras informações/Evento Gratuito)

Participante Convidado: Dami Silva, Psicólogo, Estudante de Filosofia e Doutorando em Estudos Linguísticos PPGEL/UFU/GELP e Participante Membro Haeresis: Cirlana Rodrigues de Souza.

Iremos conversar sobre a questão investigada no livro “PSICANÁLISE SEM ÉDIPO?, de Philippe Van Haute e Thomas Geyskens (2016), sob o olhar da filosofia e sob o olhar psicanálise.

Sinopse/Apresentação feita pelo filósofo Vladimir Safatle:

“Em Psicanálise sem Édipo?, Philippe Van Haute e Thomas Geyskens partem dos estudos de Freud e de Lacan sobre a histeria a fim de defender duas teses maiores. Primeiro, trata-se de se perguntar sobre o que existe na latência da teoria freudiana da sexualidade, para além da insistência no caráter normativo de modelos de socialização do desejo baseados na estrutura de conflitos própria ao complexo de Édipo. Essa latência indica a possibilidade de uma peculiar “psicanálise sem Édipo”, a saber, uma psicanálise mais capaz de lidar com a polimorfia da sexualidade humana. Nesse sentido, os esforços de Van Haute e de Geyskens se inscrevem em uma elaboração psicanalítica original do impacto da crítica do familiarismo, tal como desenvolvido em um importante setor da filosofia contemporânea, como podemos ver, por exemplo, em Foucault e em Deleuze e Guattari. No entanto, o verdadeiro objetivo se desvela mais à frente, explicitando-se no último capítulo deste impressionante livro. Trata-se da defesa de uma antropologia filosófica baseada naquilo que os autores entendem por “patoanalítica”. Abandonando o esquema tradicional de compreensão das relações entre normalidade e patologia, na qual uma antropologia normativa encontra expressão perfeita em um conceito de normalidade que servirá de orientação para as múltiplas modalidades de intervenção clínica, Van Haute e Geyskens procuram inverter esse sistema de valores. Dessa forma, as patologias se demonstram indissociáveis das formas de expressão da antropologia. Como dizia Lacan, não há sujeito sem sintoma. Da mesma forma, não há antropologia, não há reflexão sobre a natureza humana sem pathos. Tal perspectiva nos abre a orientações inovadoras, tanto para a clínica quanto para a reflexão filosófica. Pois se trata, por um lado, de se perguntar o que significa curar um pathos que expressa, à sua maneira, o que define a especificidade do anthropos. Não seria o caso de inicialmente denunciar, como condição para toda forma de “cura”, a verdadeira pedagogia do desejo que parece assombrar nossos conceitos de normalidade? Por outro lado, aparece uma antropologia que se serve continuamente da produção de anomalias e desvios como condição para sua própria realização, o que nos leva a uma visão muito mais rica e complexa da experiência humana”.

O NÓ BORROMEANO QUE ENLAÇA ÉDIPO, ANTÍGONA E G.H. OU, PEÇO-TE QUE ME RECUSES O QUE TE OFEREÇO PORQUE NÃO É ISSO

O NÓ BORROMEANO QUE ENLAÇA ÉDIPO, ANTÍGONA E G.H. OU, PEÇO-TE QUE ME RECUSES O QUE TE OFEREÇO PORQUE NÃO É ISSO

 

            Cirlana Rodrigues de Souza

 

(Trabalho apresentado no II Seminário [Interno] do GELP, em 15/12/2016)

 

Sobre o amor, três nomes escrevem ficção: Édipo, Antígona e G.H., este que não é um nome em si, é pura letra. Esses nomes suportam o sujeito do inconsciente naquilo que se faz o Sinthome.

Estas cerziduras são acerca desse Sinthome, do Seminário, Livro 23, de Jacques Lacan: “Sinthoma é uma maneira antiga de escrever o que posteriormente foi escrito sintoma” [J’ai annoncé sur l’affiche: LE SINTHOME.  C’est une façon ancienne d’écrire ce qui a été ultérieurement écrit SYMPTÔME /18-11-1975[1]].  O psicanalista francês abre o fatigante Seminário 23, Le sinthome, dos anos de 1975 e 1976, com um retorno, afinal sempre gostou de retornos, de ritornelos. A maneira antiga sinthome é a grafia para ‘symptôme’. É um seminário que, segundo Lacan, precisa da l’installation de la police de caractères spécifique, para sua transcrição.  Transcrever sujeito pela amarração em torno do que lhe causa é particular, de cada sujeito: poderia ser a leitura desse Seminário de cada um, particular, mas impossível de ler sozinho? Se Édipo é a nomeação da lei universal, sua marca no outro é singular, de falta que predica e dá o tom de suas escolhas, é Antígona. Dessa escolha tão singular e surpreendente, é G.H. que escreve o que arrebata o sujeito, o não nomeado e não identificável.

O working in progress de Lacan foi em torno da experiência psicanalítica e, nos tempos de agora, essa experiência versa e inversa sobre esse sujeito não predicado, esse sujeito não identificável: ausência da interpretação? Fim do ato? Ou emaranhado de tudo que faz esse sujeito que só fez por merecer seu status quo de falasser, daquele que por tanto falar e por tanto amar o corpo que imagina que tem goza por direito?

Essa frase de abertura do Seminário 23, de Lacan, é frase de início de romance: anuncia o que virá e lança o leitor/ouvinte dentro de um percurso que não tem volta, como se todas as linhas-línguas se embaraçassem e a tentativa única é fazer desembaraços dessas línguas, trabalho na experiência psicanalítica. Esse Seminário é para insistir que há algo no sujeito que se ex-creve de outro modo daquilo que se manifesta na linguagem e nos sintomas: do que ex-siste do Real[2]. Nele, a linguagem cumpre sua função de matar a coisa. Todas essas metáforas, metonímias e atos, isto não é o sujeito! É ex-crita de caracteres específicos que precisará de transcri(a)ção: é letra como o limite entre essa primeira morte e a segunda. Em transcri(a)ção  esse (a) é o centro, a negativa como inscrição inconsciente nas letras dessa ex-crita.

Há quem não lê esse Seminário, a fadiga seria um valor a se pagar que alguns não querem: é trabalhoso, precisa de muito esforço ali onde deveria haver sentidos e ditos sobre a psicanálise, bonitos de entender. Falta ar. Lacan lê Joyce, nesse Seminário. James Joyce faz sinthome e é preciso ir deixando os sentidos e seus efeitos, melhor dizendo, ir deixando a linguagem e entrar em uma dimensão que existe alhures e cuja entrada é a garganta do sonho de Irmã: lá (de)onde isso advém e que só olhamos pelos buracos. O limite é letra, aquela que Joyce escreve Finnegan’s Wake e Lacan seu Seminário. Mas, não se iluda, mesmo que você instale um dispositivo para transcrever os caracteres específicos do Seminário 23 e de Finnegan’s Wake, você vai continuar fatigado. Acompanhe Joyce lendo o que escreveu: não tem fôlego, não tem espaço entre os significantes. A experiência psicanalítica é fatigante, de tirar o fôlego do sujeito, pois ali onde falta o ar é onde ele fala, sem engano.

Sinthome é o quarto elemento do Nó Borromeano, a topologia suporte do sujeito do desejo. É o que possibilita a esse sujeito do desejo ser gozante, falasser, aquele que goza! Nó Borromeano são cordinhas de barbante que se enodam em torno do objeto causa do desejo, o objeto a: ali onde há a falta da falta, causa do desejo. Topos do gozo. Buraco não é Real.

Esse Nó já existia, é nomeação espanhola para uma família italiana do século XV, Brasão dos Borromeos cujas propriedades dizem a Lacan da relação entre Real, Simbólico e Imaginário, relação essa que vai ler pelas vias da teoria dos nós em matemática: propriedades das articulações das superfícies estruturadas como nó, superfícies não mais da geometria euclidiana. Na família Borromeo, cada anel remetia a uma arma da família e à tríplice aliança. Nesse Nó de armas, a falta de uma arma enfraquece as outras duas.

Sobre tudo isso versa este texto que busca ver que há Nó entre Édipo, Antígona e G.H. Aliança entre dois nomes e uma letra. O que os articula? O saber-fazer com o que lhes causa e, como o Joyce imaginado por Joyce, fizeram escolhas, versaram seus nomes.

 

  1. Pequena história do Nó Borromeano

 

O Nó Borromeano existia antes dessa família italiana e suas armas. Foi presente da família Sforza, pelo apoio político na defesa da cidade de Milão, qualquer página da história conta isso: existia no budismo, existia com os vikings. Jacques Lacan soube do Nó Borromeo no dia 08 de fevereiro de 1972, durante um jantar com a amiga que estudava matemática.  Lacan se interessa é pelo enodamento dos nós. Por que? Não se sabe, mas é possível uma hipótese. Lacan, durante mais de vinte e cinco anos falou de Imaginário, Simbólico e Real. Ele vê a consistência no brasão da família (primeira figura abaixo, à esquerda). Queria o brasão da psicanálise? Esse Nó foi (e ainda é) muito utilizado pelo cristianismo e também entre diversos outros povos europeus ao longo do tempo, como símbolo de união e força. Os cristãos rezam para ele [há um São Carlos Borromeu] e o cristianismo tem o mais potente dos Nós: o Nó da Tríplice Aliança, da Santíssima Trindade (segunda figura abaixo, à direita). Todo Nó Borromeano tem como especificidade o fato de que se cada um dos anéis for retirado, os outros três ficarão livres, sem que se forme um par. Sempre foi usado como uma tríade para representar uma Unidade. Símbolo da Santíssima Trindade cristã, foi desenhado a partir de uma ilustração do século XIII encontrada em um manuscrito francês na Cathedral de Chartres, e reproduzida no livro de um tal Didron:  Iconografia Cristã, de 1843. Lacan usou-o para ilustrar a unidade do Sujeito, porém fará uma heresia: escolhe acrescentar um quarto elemento nessa Santíssima Trindade, sua troisième ganha uma quarta dimensão, coloca o que é do homem entre os santíssimos. Sujeito da psicanálise é uma unidade? Unidade, Gestalt sempre foi um engodo para Jacques Lacan. Afinal, o que quis com isso de Nó Borromeu? Quis emaranhar a experiência psicanalítica para que o sujeito não sucumbisse ao Imaginário, ao Simbólico e ao Real. E nem a psicanálise.

Esse Nó da cristandade deve ser lido iniciando-se com a palavra unitas, no centro, e seguindo as sílabas a partir da esquerda em sentido horário: Unitas Tri-ni-tas, ou seja, Um em Três, ilustrando a Trindade dos nomes do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No Nó da psicanálise lacaniana, Lacan inverte o sentido da leitura e ali no centro, onde é unidade, é o topos do objeto a, local a ser sempre vazio.  Sujeito não será Um em Três, mas algo do tipo: apesar de três, outra coisa.

 

No brasão da família Borromeo, o Nó Borromeano aparece discretamente em um pequeno quadro azul, próximo às patas traseiras do cavalo (primeira figura anterior).

 

 

No palácio da família, descobriram os anéis ligados de quatro maneiras topologicamente diferentes, como conta curiosamente Stewart (2009, p.96):

Encontra-se o Nó Borromeano bem antes, como já dito: na arte budista afegã do século II e em algumas apresentações na mitologia grega, sempre para simbolizar a força e a unidade, especialmente na religião e nas artes (Michelangelo assinava seu M em um Nó, enodando arquitetura, pintura e escultura, colocando ali o que era dele).

Na matemática da Teoria dos Nós, um entrelaçamento Brunniano é uma trama de ligação entre três ou mais elementos geométricos que se separam caso um desses elementos seja removido, nos contando ainda Stewart (2009). O adjetivo borromeano deriva do artigo Über Verkettung (Sobre entrelaçamento), escrito em 1892 pelo matemático alemão Hermann Brunn. O nó borromeano é um caso particular, onde o entrelaçamento é de três elementos circulares.

No Almanaque das Curiosidades Matemáticas (Stewart, 2009, p.96), aparece a pergunta: “Por que és tu, Borromeu?” Porque tu és topologicamente distinto e existe em aliança: um não existe sem o outro, tu só existes com o outro. Contudo, para Lacan, o jeito de saber-fazer com isso é particular, de cada um: pelas vias do sinthome, o quarto elemento nesse Nó de três onde o sujeito existe para além desse outro e dessas alianças.

Todo sujeito é estrutura de três elementos. Imaginário, da formação do eu onde se inscreve a primeira identificação e a linguagem vem fazer corte nesse engodo da semelhança, quando o sujeito a vir-a-ser constata que a imagem que o identifica vem do olho do outro. Precisa fazer com isso. Simbólico, onde a linguagem que lhe pré-existe cinde a unidade, inscreve a falta e determina a impossibilidade de seu desejo por um objeto não nomeável, o saber é não-todo. Precisa identificar-se na alteridade. Real é o impossível de abordar, o inefável, o indizível, o que atravessa essa estrutura e, desse atravessamento, o sinthome, o saber-fazer.

Só pode ser Nó de três: Real, Simbólico e Imaginário estruturam um sujeito, o singular em uma estrutura universal de linguagem que pré-existe. Mas, isso que é três precisa que dele mesmo se faça um quarto elemento: sinthome. Esse enodamento gira em torno da falta da falta, do objeto a. Entre Simbólico e Imaginário, o sentido, a inibição. Entre Imaginário e Real, a angústia, o Gozo do Outro Barrado, o desejo. Entre Real e Simbólico, Gozo Fálico. O sinthome enoda esses elementos: é o particular do sujeito.

 

  1. Da primeira vez do Nó

 

Para Lacan, o Nó Borromeano lhe permitiu amarrar as três orações que escrevem o amor: Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso, no Seminário 19 …Ou pire. Le savoir du psychanalyste (1971/1972). Essa frase só é possível como um todo, pois se retiramos uma de suas partes, um de seus verbos, ela se desfaz. É nesse momento da lição 5, desse Seminário, de 09 de fevereiro de 1972 (um dia depois do referido jantar quando a amiga lhe conta sobre o Nó) que Lacan irá, pela primeira vez, apresentar o Nó Borromeano para mostrar o enodamento dessas orações quando trata da lógica e diz que, nesta, também, o Real faz impasses. Fala da letra do amor, la lettre d’a-mur.

Escreve no quadro a frase em duas línguas, o traço e a fonética chinesa e na conhecida língua francesa:

 

 

 

 

 

 

 

 

 蓋 非 也    請  拒 收     我    贈

                                          gài     fēi        yě          qǐng       jù       shōu           wǒ          zèng.

                                [Je te demande de me refuser ce que je t’offre, parce que c’est pas ça.]

 

Nessa letra, três dimensões: Imaginário, Peço-te que me recuses {eu e tu, do espelho}; Simbólico, o que te ofereço {desejo como desejo do Outro}; e Real, porque não é isso {na negativa}. No final da aula, depois de dizer de uma lógica tetrádica para essa letra do amor, ele diz sobre a função da topologia, amarrar essa lógica:

“(…)que les armoiries des BORROMÉE.

[Primeira vez do Nó]

Si vous copiez bien ça soigneusement – j’ai pas fait de faute – vous vous apercevrez de ceci : c’est que – faites bien attention – celui-ci, le troisième, là vous le voyez plus – vous pouvez faire un effort comme ça, c’est accessible – vous le voyez plus. Vous pou­vez remarquer que les deux autres, vous voyez, celui-là passe au-dessus de celui de gauche et il passe au-dessus aussi là. Donc ils sont séparés. Seulement à cause du troisième, ils tiennent ensemble. Ça, vous pouvez faire l’essai pour faire… si vous avez pas d’imagination faut faire l’essai avec trois petits bouts de ficelle. Vous verrez qu’ils tiennent.”

Essa citação de Lacan é aqui literal, não precisa ser traduzida, é apenas a mostração de que La troisième é sobre o que não se sabe e que nos move. Esse enodamento é por não saber o que nos causa, nossa incompletude. O não-todo que nos determina.

Assim, qual aliança em torno disso fizeram três sujeitos tão bem nomeados como Édipo, Antígona e G.H. Por que são eles, Borromeus?

 

  1. Édipo e Antígona

 

O brasão dos Borromeos é consistência de uma família, seu nome, suas armas. Um nome é uma arma e como arma acaba por matar. Antígona tem seu brasão, um nome. Sua árvore genealógica é magnífica, vem da realeza grega e dos Deuses gregos. The Royal House of Thebes[3] nasce com o nome de Agenor, que gera Europa e Cadmus. Cadmus gera Polydorus, Semélê, Zeus e Agavê. Agavê gera Pentheus. De Semelê e Zeus nasce Dionysus. Polydorys gera Labdacus que gera Laius. Menoeceus gera Creon e Jocasta. Creon e Eurydice geram Megareus e Haemon. Jocasta e Laius geram Oedipus. Jocasta e Oedipus geram Polyneices, Eteoclês, Ismene e Antígone.

Vale lembrar que Antígona ia se casar com Haemon, filho de Creon, portanto, herdeiro do trono de Thebes. Mulher de predestinações. Mas, nas linhas que a amarram na herança de seu nome pode se imaginar uma transversal: ali, no lugar da mãe e da mulher, um embaraço, ou duas retas, uma indo na direção do pai e outra na direção do filho.

Ao responder ao “Quem tu és?”, pergunta similar a “Que queres tu?”, o sujeito carrega pedaços perdidos do que lhe causa, dessa gênese de nomes, de predicações.

Antígona e Édipo, seu pai, o Rei de Tebas, são esculpidos juntos, se arrastando um sobre o outro. Amarrados um ao outro. Joyce, louco, escreve letra, pois se continuasse escrevendo verbo e significantes bem se estraçalharia como Édipo e Antígona: furaria os olhos e iria cumprir seu destino, a morte como preço de gozar.

Vejamos o que nos mostra, sobre esses dois mitos, a escultura “Oedipe Roi”, de Rudolph Tegner (1873-1950)[4], onde temos Antígona acompanhando seu pai no caminho do exílio, indo a Colono, lembrando que as esculturas congelam movimentos, congelam ausências:

 

São dois corpos em movimento e Antígona é aquela que carrega, no final das contas [do preço a pagar], o peso do nome-do-pai. Esse pai que não é qualquer um: é Édipo Rei. Esse pai não deixa Antígona ir-se, joga-se sobre ela: Nó Borromeano desse pai de olhos arrancados. O Oráculo disse que Édipo iria matar seu pai, casar com sua mãe e ser Rei. Faz isso porque tudo sabe, o saber é sua arma, seu engano. Por isso Lacan escreveu um quarto Nó: três não sustenta um sujeito. Édipo, a seu modo, subverte a lei. Édipo cumpre seu destino, não conseguiu fazer outra versão dessa imaginária predicação, dessa imaginária nomeação: foi o que disseram as palavras. Sem corte nesse engodo, o Real furou-lhe os olhos.

A filha dessa profecia que se cumpriu (Tu, Édipo, és aquele que matará o pai, casará com a mãe e será Rei, disse-lhe o espelho) vai arrastar esse nome, esse pecado, sua predicação. Quem és tu, Antígona? Escolhe, arrastada, melhor dizendo, atraída por esses olhos furados, nomear-se filha de Édipo Rei. Antígona vai falar e gozar ao ser engolida pelos buracos na face de Édipo. Essa mulher filha de mãe morta pela letra do amor vai herdar do pai o saber em subverter as leis. A filha do incesto, de um amor que seguiu sua regra, subverte a lei de Creonte, do rei: nasceu para subverter. Amarra-se em um simbólico da mais alta envergadura: reconhece a lei para subvertê-la. Coisa que o pai não fez: não reconheceu a lei, subverteu-a na credulidade da imagem de um rei. Não nos enganemos, Antígona não é resignada a este nome. Dos filhos de Édipo, apenas Antígona, uma mulher, irá saber-fazer com esse nome, antes da morte: transgredirá as leis da Grécia, será uma heroína para aqueles que habitam a República do Gozo. Essa subversão está, para sempre, escrita no texto de Sófocles (2013, p.33):

 

Creonte: E tu, tu que baixas a cabeça,

Admites ou negas que procedeste assim?

Antígona: Admito, não nego nada.

Creonte: Tu, podes retirar-te para onde queres,

de acusações condenatórias estás livre.

E tu, declara sem rodeios, sinteticamente,

Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?

Antígona: Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.

Creonte: Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?

 

Pergunta, convenhamos, de um rei tolo, daqueles que não sabem o que é um sujeito do desejo e que goza e para quem a morte é lucro. Dirá, ainda, Antígona a Creonte:

Antígona: […] Quem vive num mar de aflições iguais

às minhas, como não há de considerar a

morte lucro?

Defrontar-me com a morte/não me é tormento. Tormento seria,

se deixasse insepulto/ o morto que procede do ventre

de mina mãe. Tuas ameaças não me atormentam.

Se agora te pareço louca,

pode ser que seja louca aos olhos de um louco. (SOFÓCLES, 2013, p.34)

 

A aflição é gozo e, sem corte nisso que transborda, a morte não é o pior.

O que mais intriga Lacan, em Joyce, é esse louco que não enlouquece, ao contrário do que faz Édipo, mas que também não escolhe a morte, como faz Antígona: o que suporta essa estrutura psicótica, um sujeito que em seu desejo estaria alienado ao Outro? O que amarra esse sujeito em si mesmo, desamarrando-o do Outro? Tal como Joyce, Antígona bem poderia ser louca sem ter enlouquecido, pois era filha de um pai sem lei.

Édipo, que foi Rei por saber o enigma, decifra o que não era para ser decifrável [afinal, decifra-me ou te devoro era para ser uma brincadeira, para ficar no joguinho do amor].  Cegou-se por não saber da mãe como a mulher de Laios, que era seu pai. Esse Laios foi também pai morto. Mas, o que Édipo fez foi não recusar o destino de todo menino, cujo primeiro e único amor é sempre a mãe, dirá Freud. Quando arranca os olhos, o que queria arrancar de si? A imagem de si no olho da mãe, imagem de um amor infindável do qual ele sabia ser impossível se livrar. Depois que Jocasta se mata, ele perambula em desamparo. Édipo não sofria pela vergonha, por ter descumprido a lei fundamental da civilização, a lei do incesto. Sofria, ancião, por amor, isso sim, por não ter mais a mulher-mãe que amou e possuiu: não foi de vergonha e culpa que morreu, essa é a moral do mito, morreu como Romeu, por amor da amada, ficou se espiando em vida e seu lamento é por não tê-la mantido viva, pois ele, que tudo sabia, não soube fazer isso. Sofria da dor de todo mundo.

Antígona não nega esse nome, porque sabia que era filha do amor e não da negação da lei, do crime. Antígona o sabia. Vale lembrar que Antígona poderia ser rainha se negasse esse nome, afinal era a prometida de Hémon, filho de Creonte: escolhe seu nome e, nesse momento, vai além do pai por não querer ser rainha. Mas é preciso atenção, nesse ponto: sua escolha é não por simplesmente enterrar o irmão morto, é um ato para enterrar seu nome: primeira morte, aquela do simbólico. Ao final, vai morrer tentando e isso é literal, porque também herda da mãe algo que a define: matar-se. Segunda morte, do Real. E, assim como subverte a lei, também vai morrer-se de outro modo, por amor ao nome de Édipo Rei, letra do amor.

É isso? Aos sujeitos trata-se de cumprir seu destino sempre, de algum modo, anunciado por um outro, em nome do amor a esse outro? Édipo vai carregando sua ficção até o fim: velho, arrasta-se por Colono, banido e culpado, envergonhado, edipiano. Mas, o que fez Antígona, além de questionar a ordem de uma nação e morrer? Fez tudo, ficando ali entre o Real e o Simbólico. No pai e na filha, uma marca nesses mitos: ambos parecem cumprir seu destino. Em Édipo, seu desejo foi seu destino. Em Antígona, seu gozo foi seu destino, por direito de ter sido filha do desejo, morre como aquela que foi piamente piedosa e imunda.

 

  1. G.H. que atravessou uma barata

 

G.H. não é um nome.  O que é um nome?  Do latim Nomen, do grego Onyma ou Onoma, é a palavra usada para identificar uma pessoa e, geralmente, vem como duas palavras. A primeira identifica o ser e a outra vem do latim Proprius, privado, de si mesmo, que gerou também propriedade.  Édipo, Rei de Pé Inchado, tem dois nomes, Édipo Rei, que o identifica por meio do Tu és isto, o Rei e como predicado é aquele que tudo sabe, seu nome é nome do engodo imaginário. Antígona é Antígona, Filha do Incesto, nome que a identifica pela diferença [melhor haver simbólico] e a predica como faltosa: tem a letra da falta que traça seu destino.

G.H. não se decifra, não é identificada. G.H. não tem identidade. Parafraseando Lacan ao falar do Stephen como o Joyce que Joyce imagina, no retrato de um artista quando jovem, G.H. bem pode ser a Clarice que Clarice imagina, em sua letra. Clarice que tinha um cão chamado Ulisses. Esse nome Ulisses é a versão metafórica do Joyce que Joyce escreve em significantes. Finnegan é a versão indizível do Joyce que Joyce faz letra.

Aos olhos de Antígona, G.H. é covarde. Ela mesma se declara covarde. Não tem coragem de dizer seu nome, pois só tem duas pernas, falta-lhe a terceira perna: “essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la” (LISPECTOR, 2014, p.10).

Sem nome, esse sujeito se suporta como? O que sabe-fazer sem uma terceira perna? Sem nome não há lei para subverter. Não há nome-do-pai para arrastar.

G.H. estava sem o que fazer. Melancólica. G.H. é mulher. G.H. é sujeito não determinado, é feminino. Entra no quarto da empregada que foi demitida para fazer uma faxina nesse quarto. Sabe-se, com isso, que G.H. é a senhora que vai ocupar a posição da escrava. A identidade, sua “primeira aderência” lhe é proibida: “A identidade me é proibida, eu sei. Mas vou me arriscar…” (LISPECTOR, 2014, p.104). Entra no vazio, adentra para um espaço onde a ex-sistência não tem sentido, onde não há como se enganar e não há sentidos. Do armário sai uma barata. Armários se abrem para outras superfícies, como um buraco. Uma barata advém desse vazio, onde nada havia para fazer.  G.H. é colocada a trabalho: saber-fazer com essa barata, seu sinthome. Parece louca, o tempo todo. Não sabemos. Mata e come a barata, e vai deixando pistas disso que somente ela sabe e faz. Em outro lugar, há alguma coisa que é preciso ser dita. G.H. fala e goza: “Se eu não disse é porque não sabia que sabia – mas agora sei” (LISPECTOR, 2014, p.125). Mas, G.H. sabe como Édipo e como Antígona? Não, podemos apostar, pois ela come a barata:

 

Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha pureza fácil. O antipecado. Mas a que preço. Ao preço de atravessar uma sensação de morte. Levantei-me e avancei de um passo, com a determinação não de uma suicida mas de uma assassina de mim mesma (LISPECTOR, 2014, p.174).

 

Atravessou a morte, depois de olhar pelo buraco. Aqui, seria ainda G.H. covarde diante da voraz Antígona? De fato, a escolha de cada sujeito é uma escolha de saber-fazer consigo mesmo, escolha sempre mórbida, pois é escolha atraída pela falta: ética do sujeito.

O sinthome de G.H. é, por todos nós, conhecido em sua consistência imaginária: basta se lembrar de uma barata. Mas não se engane nela, pois angústia é não capturável e há um quê de angústia em todo sinthome.

Agora, G.H. é só paixões de toda ordem: ávida pelas coisas do mundo, tem desejos fortes e definidos, conta que à noite irá usar não o vestido azul, mas o preto e o branco, irá comer e dançar. “Mas ao mesmo tempo não preciso de nada”, ela diz (LISPECTOR, 2014, p.185). G.H. nos informa, então, o que foi isso de atravessar a morte:

 

A despersonalização como a destituição individual inútil – a perda de tudo o que possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. Tudo que me caracterizava é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim. Assim como todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de todas as mulheres. (LISPECTOR, 2014, pp. 185-186)

 

G.H. nos conta que esse é o ‘verdadeiro trabalho’ do sujeito: se deseroizar (ela diz deseroização, significante que Clarice inventa), compreender que a “vida em mim não tem meu nome” (LISPECTOR, 2014, p.187) e que desistir é uma revelação. G.H. vai, pelas paixões, se enodando, fazendo suporte de si mesma, sem predicar-se.

 

Amarrações no Brasão de Édipo, Antígona e G.H.

 

Na conversa entre Antígona e G.H., quando esta dizia à outra que fizera o ato proibido de tocar no que é imundo, e G.H. viu Antígona lhe responder que o ‘melhor’ era fazer a escolha pelo imundo, pelo nome do pecado e não se atormentar, há uma torsão.  G.H. conta a Antígona que escolher se atormentar para fazer outra coisa com isso que lhe causa não é pecado. Reviravolta diante da heroína de Tebas que estranhará, sempre, como um sujeito pode vir-a-ser sem ser herói, sem um eu identificável e um desejo não nomeado. Afinal, o que restaria ao sujeito da tarefa de subverter o mundo, enfrentar a ordem, recusar-se à subordinação, ao engano? Conforme as pistas de G.H., escritas nas letras de Joyce, é isso: a tarefa é saber-fazer com o que resta, e o que resta não tem nome.  G.H. encerra a conversa dizendo à filha de Édipo Rei e Jocasta: “Antígona, transgrida a lei de Creonte e o mundo, deixe de se arrastar agarrada a seu pai, subverta seu nome e não se suicide, atravesse a morte”.

Sinthome se parece com isso: o que cada um de nós inventa como suporte de nós mesmos, que faz laço em si mesmo. Jacques Lacan enlaçou sua psicanálise nesse Nó Borromeano para fazer dela não sentido, de gozo barrado, de uma amarração epistemológica em torno de um objeto que é por não tê-lo. Na experiência de análise, o que temos de ler são as pistas desses sujeitos que vão cerzir seus nomes com a marca de Édipo, a escolha de Antígona e a destituição subjetiva de G.H. e, como Nó, não há um sem o outro, cabe ao sujeito amarrar tudo isso.

Nessa letra do amor, não se sabe bem quem pede e quem recusa e, mais ainda, não se sabe o que se pede e o que se recusa. Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso [o que desejo]: Édipo não recusou o que lhe foi pedido, Antígona escolheu ficar entre a afirmação e a negação do desejo e G.H. não é isso.

Uma barata, advinda da garganta de Irmã, ou do armário da empregada, enoda essa ficção, segundo G.H. e sua paixão. Tu és Borromeu fazendo outra versão de teu nome!

 

REFERÊNCIAS

LACAN, Jaques. …Ou pire. Le savoir du psychanalyste (1971-1972). Disponível em: < http://staferla.free.fr >. Consultado em: 21/10/ 2016.

 

______. Le Sinthome (1975-1976). Disponível em: < http://staferla.free.fr >. Consultado em: 30/09/2016.

 

______. Seminário, Livro 23. O sinthoma (1975-1976). Trad. Sérgio Laia. Rrev. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

 

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

 

SÓFOCLES (498 a.c. – 406 a.c.) . Édipo Rei. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L & PM, 1999.

 

______. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L & PM, 2013.

 

STEWART, Ian. Almanaque das curiosidades matemáticas. Trad. Diego Alfaro. Rio de janeiro: Zahar, 2009.

 

 

[1] Neste texto, todas as citações de Jacques Lacan, em francês, foram retiradas dos referidos Seminários publicados em http://staferla.free.fr/.

 

[2] Encontra-se, no texto em francês a sentença “qui s’atteste de l’ex-sistence-écrite de la même façom: x, trait de union, s – de l’esistence du sexe”. É a equação do sujeito com o vazio, formalização da ex-sistência-escrita onde o sujeito existe por se escrever em torno disso que lhe é causa. Desse modo, escrevo ex-creve e ex-crita como fazer dessa “ex-sistência-escrita”, ex-crita da impossibilidade. Seminário Le Sinthome, Livro 23, Aula de 20 de janeiro de 1976.

 

[3] Descrição feita a partir das informações retiradas de https://www.timelessmyths.com/classical/thebes.html. Consultado em 20/10/2016.

 

[4] Imagem retirada de http://cop223.tumblr.com/post/81994953213/oedipus-and-antigone-rudolph-tegner. Consultado em 20/10/2016.

Espaço Hæresis de história e transmissão da Psicanálise

Espaço Hæresis de história e transmissão da Psicanálise

Coordenação Aline Accioly Sieiro

Com realização mensal aos sábados, das 8:30 h às 10:00 h, com uma hora e trinta por encontro, perfazendo três horas mensais, com datas previstas para 18 e 25 de março, 08 e 29 de abril, 13 e 27 de maio, 10 e 24 de junho, 12 e 28 de agosto, 16 e 30 de setembro, 21 e 28 de outubro,  04 e 25 de novembro.

No começo tivemos Freud. Formado na escola de medicina da universidade de Viena em 1881, trabalhou em um hospital psiquiátrico em 1883, mas foi só em 1895 que rompeu com as experiências, teorias e hipóteses de outros colegas para enfrentar a construção epistemológica da psicanálise. Nesse mesmo ano, Freud escreveu O Projeto para uma psicologia científica, texto que contém ideias centrais sobre o funcionamento do aparelho psíquico e da noção de memória; essas noções e hipóteses germinais foram desenvolvidas ao longo de muitos anos de trabalho e escrita dos diversos textos que hoje conhecemos e que são a marca da invenção freudiana. O projeto foi deixado de lado temporariamente e em 1900 Freud publicou A Interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação com o inconsciente e Psicopatologia da vida cotidiana. Estava fundada a psicanálise, ainda que (o já nomeado professor) Freud não tivesse interlocuções nos meios acadêmicos e tivesse suas ideias rejeitadas. Os textos publicados não tiveram reverberação e a primeira tiragem, de apenas 600 exemplares levou dois anos para se esgotar.

Em busca de interlocutores, Freud deu início, em 1902, a Sociedade psicológica das quartas-feiras. A partir dessa época, Freud colocou em movimento noções que são importantes na psicanálise, de textos, por exemplo, que seriam publicados apenas em 1920, como os conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte, a noção de cura em psicanálise e a importância da transmissão a partir da escrita de caso clínico. Suas ideias não foram muito bem acolhidas e ele era muito criticado e boicotado. Em algumas biografias, ele é descrito nesse tempo como um homem solitário, já que até mesmo muitos adeptos da psicanálise não partilhavam da visão que ele tinha sobre certos conceitos. Muitos aspirantes a psicanálise daquela época não entendiam ou conheciam seus textos, o que causava uma série de mal-entendidos, especialmente sobre a conceito de inconsciente. Desde o princípio temos o mal-entendido e o equívoco como parte da psicanálise, já que nunca parece ser suficiente se tornar psicanalista apenas a partir do estudo teórico. Para tentar dar conta do inconsciente, há um constante trabalho acerca de uma noção impossível de dominar.

Nas atas das reuniões das quartas-feiras, publicadas em português recentemente, podemos acompanhar a construção e o trabalho de transmissão da psicanálise a partir de Freud e dos primeiros psicanalistas. Alguns membros o posicionavam como um ideal a ser alcançado, mas pouco caminharam em suas construções. Freud parecia extremamente envolvido na constante necessidade de pesquisar, escrever, reescrever, estudar, criar suas teorias sobre o inconsciente. Freud não foi importante por ser uma figura mestre da psicanálise. Sua posição de esvaziamento constante em suas obras permitia seu caminhar adiante, seu enfrentamento acerca dos impasses teóricos que surgiam a partir da clínica e não ter medo de ir contra suas próprias construções quando percebia que elas eram equivocadas. Passou a vida revendo suas afirmativas categóricas e possui textos cheios de revisões. Sabemos também de tantos outros textos não publicados e de diversas ideias que não tiveram tempo de serem enfrentadas.

Algum tempo depois de Freud, tempo de diversas construções em psicanálise, Lacan surgiu como um estranho no ninho. Muito se falava sobre suas características estranhas no coração da psicanálise francesa. No tempo de Lacan, após duas grandes guerras, a psicanálise tinha se tornado majoritariamente um lugar de figuras narcisistas onde a psicologia do ego reinava. A clínica parecia ser um espaço de elogio a neurose como ideal para o sujeito e muitas questões sobre a psicose e sofrimentos enigmáticos pareciam limites até a onde a psicanálise podia alcançar. Lacan foi o psicanalista que retomou um dos conceitos considerados mais sombrios da psicanálise freudiana, o conceito de pulsão de morte, especialmente em sua vertente de nonsense radical. Tinha uma curiosidade enorme a respeitos da clínica das psicoses e não tinha medo de enfrentar as dificuldades que haviam surgido no alcance da clínica psicanalítica. Dessa maneira, se distinguia muito dos psicanalistas teóricos mais importantes da época. Apostando na noção de inconsciente como ponto central da psicanálise, insistiu em enfrentar questões que causavam mal-estar na sociedade psicanalítica de sua época, fossem elas políticas, técnicas, clínicas ou teóricas. Se destacava ainda por suas subversões na prática clínica, com relação especialmente ao tempo de análise e suas regras. Quando foi expulso da sociedade de psicanálise, mudou o rumo de seus seminários anuais e fundou o campo lacaniano, ainda que não deixasse de se nomear como freudiano. O ato de fundação de Lacan em seu tempo parecia algo do qual ele não podia escapar, uma escolha por uma ética na e da psicanálise que custou sua excomunhão e uma eterna fama de incompreensível e inacessível. Lacan havia iniciado seus trabalhos com um retorno aos textos freudianos para que lembrassem do que se tratava a psicanálise, que não era sobre ego – apesar de ser parte dela, mas era sobre o inconsciente. Para trabalhar com o lugar do analista, que não era de modelo, de ideal ou de alguém numa posição de saber e poder, mas sim sobre o esvaziamento dessas noções.

Freud e Lacan são importantes na história da psicanálise por que construíram seu jeito particular de trabalhar com a noção de inconsciente. Esta é a radicalidade da psicanálise, inconsciente como uma impossibilidade que nos convoca a criar um jeito particular de inventar, trabalhar, construir. Não se trata de olhar para eles como ideais, como grandes figuras mestras. Lacan já nos alertava para esse problema, quando pedia que não fossemos lacanianos. Não era sobre imitação ou repetição, mas sobre a reinvenção da psicanálise por cada um que se interessa pelo trabalho com ela. Quem se interessa pelo ofício do analista está diante dessa verdade transmitida por gerações de analistas: o desejo de um analista pela psicanálise aponta para um ofício impossível, uma força pulsional não passível de relativização, a urgência de um ato que promova invenção, um saber-fazer com isso. Assim, não estamos aqui para contemplar psicanalistas, não é em torno da contemplação que se permite movimento na história da transmissão da psicanálise.

Destaco, até aqui, a importância da obra deixada por esses dois psicanalistas, obra essa que só foi possível porque ambos se deixavam atravessar pela experiência clínica. É do encontro com os impasses em análise, em cada caso, que se tornava possível o movimento de construções em análise e, posteriormente, construções teóricas. Freud sempre esteve em torno dos enigmas de seus casos clínicos e Lacan, apesar de pouco falar sobre seus casos, também sempre esteve preocupado com as questões sem resposta que atravessavam seus pacientes e supervisionados, especialmente no que tangia a preocupação para que a psicanálise não se tornasse uma técnica aplicável e antecipatória de saber sobre cada caso.

Não é coincidência que Freud e Lacan tenham se preocupado em criar dispositivos que pudessem permitir a circulação de teoria e técnicas durante o percurso de formação de analistas. Porém, estavam desde sempre preocupados em ressaltar que a obra, a teoria e as técnicas não substituem a experiência de uma análise pessoal. A importância da análise pessoal e da supervisão foram constantemente discutidas por ambos, cada um a sua maneira, destacando que é apenas no espaço de análise que um psicanalista vai construir um saber sobre seu desejo. Coloca-lo a trabalho e responsabilizar-se eticamente por essa decisão em relação a psicanálise, ou seja, autorizar-se analista é um ato que acontece no espaço de análise, um ato que se decide sozinho, mas no laço com um Outro, esse Outro marcado pelo analista, pelo supervisor e pelos parceiros de estudos. Esses três aspectos se entrelaçam e funcionam de maneira borromeana.

Em 2016, visitei diversas faculdades de psicologia do triangulo mineiro para ministrar um minicurso intitulado “Psicanálise Marginal”, em que apresentava um breve mapeamento das derivações técnicas e políticas das psicanálises pós-freudianas. Descobri que apenas cerca 5% dos estudantes de psicologia das faculdades (particulares e públicas) havia tido contato com um texto originalmente freudiano. Sobre a qualidade desse contato, apenas cerca de 2% havia lido um texto inteiro da obra freudiana. Apesar da leitura de Freud ser praticamente nula, pelo menos 50% de todas os alunos conheciam termos da psicanálise freudiana e demonstravam interesse em se tornar psicanalistas e cerca de 30% apresentava uma grande aversão as ideias da psicanálise. Fui informada que na bibliografia incluída nas disciplinas de psicanálise dos cursos, não havia a indicação de nenhuma obra freudiana original, apenas textos de comentadores da obra. Uma professora responsável pela construção da ementa das disciplinas de psicanálise declarou, no final de um minicurso, que a leitura de Freud não era possível no meio acadêmico.

Em um evento de psicanálise que aconteceu na cidade de Uberlândia, também em 2016, um psicanalista defendia a ocupação da posição de poder e mestria nas instituições de psicanálise a partir de Foucault, afirmando a impossibilidade do vazio de poder. De tantas afirmativas foucaultianas sobre o poder, causou certo estranhamento a escolha dessa citação específica, já que o evento, de psicanálise lacaniana, abordava a questão do estrangeiro e como essa condição resulta em respostas de violência e exclusão. Se a psicanalise lacaniana se funda a partir do vazio como causa, parece que estávamos diante de um equivoco não apenas da leitura de Foucault, mas também da noção de transmissão em psicanálise.

Durante meu tempo na psicanálise, cerca de 13 anos, recebi diversas demandas de estudantes e profissionais interessados em se tornar analistas. A grande maioria inicia essa caminhada a partir dos estudos teóricos e da supervisão, mas não tarda o topão com o real, seja via uma dificuldade teórica ou uma paralisação nos atendimentos clínicos, que não se resolve com estudo teórico ou manejo de técnica. Tão logo se torna evidente a necessidade de um tempo para análise pessoal, muitos decidem por tomar um desvio, seja por se auto intitular psicanalista e seguir adiante oferecendo psicoterapias que duram pouquíssimo tempo (porque os pacientes vão embora) seja por mudar de instituição ou escola acreditando que o impasse se dá no espaço de estudos, e não nos próprios limites e sintomas diante do encontro com o real.

Já que a academia parece não ser o lugar para o estudo da história da psicanálise freudiana e parte das instituições responsáveis pela formação do analista se apoia em um equívoco acerca da psicanálise lacaniana para oferecer tratamento e depuração do desejo do analista, o estabelecimento de um espaço para essas questões se fazia urgente e inevitável. Em 2011, achei que tinha sido apenas um encontro de sorte conhecer Cirlana e Germano em diferentes situações do meu percurso de psicanalista. Hoje, em 2017, sei que o que nos enlaça é o desejo particular em torno de um saber-fazer com a psicanálise em sua proposição central, do inconsciente. Nosso ato é uma escolha ética, já que não é possível fugir da responsabilidade de se posicionar frente ao desejo pela e na psicanálise e sua implicação com o laço social. Tendo como proposição central do nosso espaço um funcionamento borromeano, partimos da importância dos três eixos fundamentais para iniciar nossos trabalhos: a oferta de espaços de estudos teóricos, mas também um espaço clínico e a possibilidade para que cada um possa escolher e enfrentar um tempo de análise e de supervisão.

Muitas pessoas querem ser psicanalistas e muitas instituições ensinam termos e conceitos psicanalíticos, mas desejo não é sinônimo de querer e o desejo pelo ofício do analista se trata de um ato de decisão, uma escolha forçada. Em um tempo no qual Freud parece esquecido pelos bancos universitários e psicanalistas se tornam grandes figuras mestres das instituições de psicanálise, parece necessário discutir do que se trata a escolha pela psicanálise. O que é, de fato, autorizar-se analista. Lacan chamava isso de aberração, que alguém se decidisse pelo desejo de analista. Sobre esse incômodo, trata-se de trabalhar com uma recusa, já que a posição do analista é essa de recusar a demanda transferencial, de silenciar a demanda de saber e fazer surgir a angústia frente a impossibilidade, para só então a invenção particular se fazer construir.

Para Lacan, diante da impossibilidade que está em jogo no ofício do analista, é preciso ser herético, pois “haeresis é realmente o que especifica o herético. É preciso escolher a via por onde tomar a verdade. Ainda mais porque a escolha, uma vez feita, não impede ninguém de submetê-la a confirmação, ou seja, de ser herético de boa maneira. A boa maneira é aquele que, por ter reconhecido a natureza do sinthoma, não se prova de usar isso logicamente, de usar isso até atingir seu real, até se fartar”. (Lacan, 1975-1976, p. 16). Em nota de rodapé, Lacan explica que haeresis vem do grego e designa a ação de fazer uma escolha.

O espaço de estudo sobre a história não nos deixa esquecer os atos importantes de uma época. Não nos deixa esquecer do que realmente se trata a psicanálise. Mas uma história pode ser contada de muitas maneiras, e, com o tempo, há quem tome como verdade a palavra de comentadores que fazem leituras costuradas e apresentam os mestres que lhe convém. Assim, atrelada a história, é preciso se ocupar também da transmissão e do presente. Hoje, no contemporâneo, que histórias estamos construindo com a psicanálise?

É de uma saída de analise que se produz um analista, um sujeito que se responsabiliza por sua maneira particular de saber-fazer com o inconsciente, não posicionando o saber-de-si no Outro, construindo um laço a partir de uma invenção. Assim, um analista é esse que (a) põe a trabalho a impossibilidade de realização pulsional, oferecendo-se como Outro; (b) passa adiante a ética de escolha em ação de um saber-fazer. Essa articulação entre transmissão e dimensão do impossível estão presentes na definição de clínica psicanalítica, em Lacan: “O que é a clínica psicanalítica? (…) Ela tem um fundamento. (…) A clínica é o real enquanto impossível de suportar”. O que faz um analista diante do impossível, em cada caso?

O espaço hæresis de história e transmissão da psicanálise objetiva por em circulação essas questões, levando em conta as noções de direção do tratamento, o poder na clínica psicanalítica e os impasses frente ao vazio como causa.

 

Primeiras leituras:

  • Freud, S. (1926) A questão da análise leiga. In Obras Completas Vol. XX.
  • Lacan, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos.

Referências Bibliográficas

 

Chechia, M. & Torres, R. & Hoffmann, W.  (2008). Atas da sociedade psicanalítica de Viena, volume 01: Os primeiros psicanalistas 1906-1908. Ed. Scritozium, São Paulo.

Goldenberg, R. & Leite, N. (2016) Dossiê Psicanálise Marginal, Revista Cult.

Lacan, J. (1975-1976). O seminário livro 23: O sinthoma. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro.

Roudinesco, E. (2011). Lacan, a despeito de tudo e de todos. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro.

 

Espaço Hæresis de Psicanálise e saúde mental

Espaço Hæresis de Psicanálise e saúde mental

Coordenado pelo membro associado Germano Almeida

 

Com realização mensal, às primeiras quintas-feiras de cada mês, com datas previstas para 09/03, 06/04, 04/05, 01/06, 03/08, 14/09, 05/10 e 09/11 das 18:00 h às 21:00h, com três horas mensais.

Com este espaço, a Hæresis inicia a leitura das articulações entre os campos da Psicanálise e da saúde mental no Brasil e em nossa região, e também as consequências de seus atravessamentos. Essa via de leitura privilegiará aquilo que a psicanálise propõe como clínica, pensando a posição do psicanalista neste campo que é o da política pública em saúde mental no Brasil.

Ler Freud quando se trata de clínica em psicanálise é uma maneira de escolher essa via de leitura, em especial no que diz respeito a traduções de sua escrita. Não se trata de iniciar nos textos primevos da metapsicologia, passando pelo desenvolvimento de sua teoria do inconsciente (que foi decantada da experiência clínica), para então supor na continuidade acumulativa que chegamos ao todo do que a psicanálise propõe como clínica. Caso tomados sob esse viés os textos podem ser ferramentas de poder, onde aquele que estudou e sabe pode agora exercer sua dominação sob outros, um risco para um campo de trabalho onde vários saberes precisam inventar um cuidado para quem sofre.

Trata-se aqui, de ler nos textos de Freud os efeitos de seu tempo, de seus diálogos com a cultura, tentando vislumbrar como a clínica que ele fazia tem consequências e efeitos no que passamos na contemporaneidade, sendo que nesse espaço privilegiaremos a saúde mental no Brasil e em nossa região como um elemento de indagação.

Fazer encontrar as perguntas que os trabalhadores de saúde mental fazem em seu cotidiano de trabalho, de maneira clara, sem falar um dialeto irreconhecível, sem evitar o encontro dos campos através do palavreado exclusivista. Evitando tomar o texto freudiano como fonte de conhecimento e de poder sobre os fazeres desses profissionais, tentamos por essa via fazer uma entrada da clínica psicanalítica, ou seja, do estranho familiar, do que vemos diariamente, mas que só é possível dizer depois.

Ler os autores que pensam e articulam a política pública de saúde mental no país e na nossa região é um modo de trazer essas questões que fazem o cotidiano de um serviço de saúde. Talvez a principal dessas questões possa ser articulada dessa maneira: Todos os dias é preciso tomar decisões técnicas sobre casos atendidos na rede de atenção psicossocial, como articular essas decisões considerando clínica psicanalítica?

Além de levar algumas questões aos textos de Freud e sua clínica, pretendemos considerar as contribuições de autores que discutem essas articulações, menos na objetivação de completude de um campo de pesquisa do que na referência necessária aos que trabalham com o tema atualmente. Dentre eles ressaltamos Luciano Elia, Christian Dunker, Fuad Kyrillos Neto, Sônia Alberti, Ângela Vorcaro, Antônio Teixeira, Aline Aguiar Mendes, dentre outros que estarão referenciados em nosso espaço.

 

Texto de Abertura do Espaço Hæresis de Psicanálise e Saúde Mental

Coordenação: Germano Almeida Faria Fortunato Pereira

 

Trabalho aqui com duas provocações. A primeira é um trecho de Christian Dunker e Fuad Kyrillos Neto em 2015, ambos pesquisadores do tema que abordo hoje: “Examinando os prontuários do asilo nacional de Barbacena, da Minas Gerais dos anos 1960, não se encontrará as formas típicas do diagnóstico psiquiátrico, tais como a paranoia, a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva ou as demências. Em vez disso, um único dado chama a atenção: o número de dentes do interno. E, pelo número de dentes, muito se podia deduzir da posição de classe e da expectativa de tratamento. Há, portanto, um dado a mais nesta conta. Um anacronismo entre aspirações discursivas de progresso e as práticas disciplinares, exercidas em instituições que não eram laicas, nem mágico-religiosas, mas movidas pelo tradicional espírito de pessoalidade, compromisso e favorecimento. Baseadas na distribuição opressiva de favores e simpatias, nossas cidadelas psiquiátricas não eram apenas lugares de maus-tratos, eram também pequenas cidades de interior, com seus caudilhos, suas virtudes privadas e seus vícios públicos, com sua “vida própria” e suas regras.” (pp 15).

Estamos no século 21, no interior de Minas Gerais, lendo as articulações da Psicanálise com a nossa política pública de Saúde Mental, são apenas 57 anos que nos separam desses prontuários lidos pelos pesquisadores. Hoje, se observarmos os prontuários dos usuários dos serviços substitutivos, o que encontraremos? O nome do paciente raramente aparece, termos técnicos de cada saber que compartilha o cuidado aparecem para dar conta dos inúmeros acontecimentos inusitados, complexos e angustiantes que esses pacientes produzem. Nos relatos contemporâneos, os que produzimos, os que lemos hoje, ainda figuram ideais de progresso, com a escritura de projetos terapêuticos singulares que soam tão disruptivos quanto o próprio funcionamento do paciente, trata-se aqui de uma certa identificação com o paciente que leva quem escreve no prontuário a uma ruptura com o que escuta?

Seguindo na primeira provocação, se antes o número de dentes assumia lugar de signo de classe, nos dias de hoje a expectativa de tratamento se vê refém do uso que cada unidade de saúde faz de seus pacientes. Não é de se espantar que, mesmo depois de tanta luta e discussão política, ainda temos pacientes institucionalizados. O problema é menos o tempo de permanência nos serviços (que para alguns beiram os 10 anos) e mais a inércia da direção de tratamento e sua ineficácia quando se trata de efeitos na vida dos atendidos. Nesse cenário, é preocupante certos acordos de compromisso que ainda bancamos com os saberes mágico-religiosos e o desmanche das equipes que trabalham com essa política pública.

Destaca-se o “tradicional espírito de pessoalidade, compromisso e favorecimento”, onde os profissionais vão fazendo uso das histórias e do sofrimento psíquico dos pacientes, para destacar sua prática e subir em palanques, para vender o peixe de suas perspectivas teóricas, para manter o louco na posição de intratável, manter-se a partir do compromisso e do favorecimento consigo mesmos. Esse essas práticas, provocam os autores, estão “Baseadas na distribuição opressiva de favores e simpatias, nossas cidadelas psiquiátricas não eram apenas lugares de maus-tratos, eram também pequenas cidades de interior, com seus caudilhos, suas virtudes privadas e seus vícios públicos, com sua “vida própria” e suas regras.”. O que isso tem haver com a prática em nossa cidadela?

Nesse sentido, não estamos vendo a lógica das daquelas cidadelas psiquiátricas de 57 anos atrás, repetindo-se hoje na distribuição de favores a quem nos interessa? Individualizando o que precisa ser público? Tentando limpar, branquear, e dessa vez pela via dos medicamentos e das hospitalidades (permanência noite em unidades de saúde) retirar o incômodo das ruas, simpatizar por alguns casos em detrimento de outros, estamos no interior de uma questão que precisa ser discutida de forma técnica e não opinativa, não se trata de uma disputa de terras em que a cada batalha discursiva ganhamos um pedaço de chão nessa nova prática manicomial.

Com essa primeira provocação, convoco os psicanalistas que trabalham nesses lugares para pensar respostas que não sejam a de disciplina da pulsão, nem a da explicação de funcionamento psicológica psicologizante, nem a de mapa da subjetividade do brasileiro. Isso nos faz evitar frases de efeito conhecidas e pouco produtivas, do tipo: “Esse aí faz tudo isso por que está fixado em coisas da sua vida”; “Ele é complexado, deixa pra lá”; “Isso e trauma da infância, ele é manhoso, isso não é crise, isso é má vontade”; ”São questões relacionais, ele está resistindo ao tratamento”; “você não percebe que pra ele a palavra é literal, então quando ele fala você precisa tentar ir para o Real dessa situação, você errou ao tentar inserir o simbólico”; etc. A direção aqui precisa ser a da singularidade com visadas ao particular, ou seja, como pensar a direção de tratamento de cada um, tanto em sua relação com a alteridade quanto com o que o causa nessa relação?

Com ajuda de Dunker e Kyrillos Neto: trata-se de sair e acompanhar o paciente do “caráter repetitivo e intrinsecamente patológico de certas relações e escolhas”, de atravessar a “gramática preponderante de como criamos determinantes para maus encontros de uma história biográfica” e interromper a sequência de narrativas hegemônicas “para produzir sentido a partir do sofrimento, seja pela intrusão de um objeto patológico, pela violação de pactos simbólicos, pela alienação da alma ou, ainda, pela dissolução da unidade do corpo político moral ou familiar”. Usando a linguagem de alguns pacientes, é “desembolar”, sair dos interesses narcísicos e totalitários, fascistas desse neo-liberalismo à brasileira. É deixar a conversa para poucos da psicanálise do cerrado e partir para o trabalho com quem ainda não viveu outras condições de invenção.

Fecho essa primeira provocação com Dunker e Kyrillos Neto: “Pensar a saúde mental é pensar o processo de institucionalização do sofrimento, bem como as políticas que elevaram o bem-estar a um fator chave na regulação de nossas formas de vida.”. Lembrando que quando cito políticas públicas, alinho-me com Amstalden, Hoffmann e Monteiro que em 2010 afirmam: a política como “o conjunto de princípios, diretrizes e normas que regulamentam as práticas sociais e a gestão dos bens públicaos, em função de um bem individual e coletivo (seja a saúde, a educação, a justiça, a cultura, etc.) – é fruto do reconhecimento e da afirmação dos direitos e das necessidades dos sujeitos (aqui compreendidos como sujeitos de direito, portanto).”.

As pessoas rompem com essa noção totalitária de política e bem comum, por que estão operando na vida a partir de uma perspectiva desejante. Isso me leva à segunda provocação de hoje, as armas que encontro e retiro do CAPSad cotidianamente.

Trouxe-as por que apesar delas não aparecerem nos relatos de prontuários, elas aparecem dentro da unidade de saúde na qual trabalho. Elas, assim como os dentes contam de um pertencimento a classe social, mas cada uma é montada de um jeito muito específico, cada uma amarrada, enferrujada e escolhida a partir de um critério.

Se nos dedicamos a passar o âmbito da escolha herética, tão falado esta noite, para o cerne de nossas práticas, não podemos desconsiderar o risco que há nesse modo de abordar o real, ou seja, é preciso estar na vertigem do que pode ser planejado, na queda do que se pode ensinar, na angústia de estar com alguém em crise e em surto sem um manual que assegure a boa prática. Trata-se de uma aposta no desejo, no desconhecido, na criação de uma direção de tratamento. Mas isso não se ensina, se inventa, e cada sujeito sabe o preço desse saber-fazer com o que não se explica, nem se define.

Mas isso não quer dizer que não há o que ler, que a invenção não precise passar pela referências dos pares, quer dizer que essa referência não garantirá os resultados apaziguadores e conformistas de uma disciplina de poder.

É por isso que convido, nesse ano, a abrir uma frente de trabalho no Espaço Hæresis de Psicanálise e Saúde Mental. É preciso fazer algumas questões à psicanálise, ainda mais quando se fala tanto da falta que uma direção de tratamento clínica faz na Rede de Atenção Psicossocial. Foi pensando em levar nossas questões enquanto trabalhadores da RAPS que escolhi ler Freud.

Ler um Freud incompleto, foi a escolha de tradução que mais se alinhou a proposta de incompletude, de não conformidade, de ruptura. Não é por que expressões em francês e homofonias e usos de linguagem são tão atrativos que eles estão aptos a dialogar com o trabalho que precisa ser feito em uma unidade de saúde.

Não se trata, portanto, de aprender o que é Neurose, Psicose e Perversão, para então defender isso que aprendemos. Trata-se de nos encontrarmos com textos que falam desses conceitos, com Freud, e outros que abordam o trabalho com a política pública em questão. Para trabalhar com eles, para pensar a partir deles e podermos nos livrar deles quando preciso, levando a frente uma posição que seja singular e particular, não passível de cópia, impossível de explicar, mas mapeável e custosa – um estilo de analista na RAPS.

Referências Bibliográficas

Amstalden, A. L. F., Hoffmann, M. C. C. L., & Monteiro, T. P. M. (2010). A política de saúde mental infantojuvenil: seus percursos e desafios. Lauridsen-Ribeiro & Tanaka, OY Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no SUS. São Paulo: Ed. Hucitec, 33-45.

Dunker, C. I. L. e Neto, F. K. (2015). Psicanálise e Saúde Mental. Porto Alegre: Editora Criação Humana. 240 p.

 

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