O NÓ BORROMEANO QUE ENLAÇA ÉDIPO, ANTÍGONA E G.H. OU, PEÇO-TE QUE ME RECUSES O QUE TE OFEREÇO PORQUE NÃO É ISSO

 

            Cirlana Rodrigues de Souza

 

(Trabalho apresentado no II Seminário [Interno] do GELP, em 15/12/2016)

 

Sobre o amor, três nomes escrevem ficção: Édipo, Antígona e G.H., este que não é um nome em si, é pura letra. Esses nomes suportam o sujeito do inconsciente naquilo que se faz o Sinthome.

Estas cerziduras são acerca desse Sinthome, do Seminário, Livro 23, de Jacques Lacan: “Sinthoma é uma maneira antiga de escrever o que posteriormente foi escrito sintoma” [J’ai annoncé sur l’affiche: LE SINTHOME.  C’est une façon ancienne d’écrire ce qui a été ultérieurement écrit SYMPTÔME /18-11-1975[1]].  O psicanalista francês abre o fatigante Seminário 23, Le sinthome, dos anos de 1975 e 1976, com um retorno, afinal sempre gostou de retornos, de ritornelos. A maneira antiga sinthome é a grafia para ‘symptôme’. É um seminário que, segundo Lacan, precisa da l’installation de la police de caractères spécifique, para sua transcrição.  Transcrever sujeito pela amarração em torno do que lhe causa é particular, de cada sujeito: poderia ser a leitura desse Seminário de cada um, particular, mas impossível de ler sozinho? Se Édipo é a nomeação da lei universal, sua marca no outro é singular, de falta que predica e dá o tom de suas escolhas, é Antígona. Dessa escolha tão singular e surpreendente, é G.H. que escreve o que arrebata o sujeito, o não nomeado e não identificável.

O working in progress de Lacan foi em torno da experiência psicanalítica e, nos tempos de agora, essa experiência versa e inversa sobre esse sujeito não predicado, esse sujeito não identificável: ausência da interpretação? Fim do ato? Ou emaranhado de tudo que faz esse sujeito que só fez por merecer seu status quo de falasser, daquele que por tanto falar e por tanto amar o corpo que imagina que tem goza por direito?

Essa frase de abertura do Seminário 23, de Lacan, é frase de início de romance: anuncia o que virá e lança o leitor/ouvinte dentro de um percurso que não tem volta, como se todas as linhas-línguas se embaraçassem e a tentativa única é fazer desembaraços dessas línguas, trabalho na experiência psicanalítica. Esse Seminário é para insistir que há algo no sujeito que se ex-creve de outro modo daquilo que se manifesta na linguagem e nos sintomas: do que ex-siste do Real[2]. Nele, a linguagem cumpre sua função de matar a coisa. Todas essas metáforas, metonímias e atos, isto não é o sujeito! É ex-crita de caracteres específicos que precisará de transcri(a)ção: é letra como o limite entre essa primeira morte e a segunda. Em transcri(a)ção  esse (a) é o centro, a negativa como inscrição inconsciente nas letras dessa ex-crita.

Há quem não lê esse Seminário, a fadiga seria um valor a se pagar que alguns não querem: é trabalhoso, precisa de muito esforço ali onde deveria haver sentidos e ditos sobre a psicanálise, bonitos de entender. Falta ar. Lacan lê Joyce, nesse Seminário. James Joyce faz sinthome e é preciso ir deixando os sentidos e seus efeitos, melhor dizendo, ir deixando a linguagem e entrar em uma dimensão que existe alhures e cuja entrada é a garganta do sonho de Irmã: lá (de)onde isso advém e que só olhamos pelos buracos. O limite é letra, aquela que Joyce escreve Finnegan’s Wake e Lacan seu Seminário. Mas, não se iluda, mesmo que você instale um dispositivo para transcrever os caracteres específicos do Seminário 23 e de Finnegan’s Wake, você vai continuar fatigado. Acompanhe Joyce lendo o que escreveu: não tem fôlego, não tem espaço entre os significantes. A experiência psicanalítica é fatigante, de tirar o fôlego do sujeito, pois ali onde falta o ar é onde ele fala, sem engano.

Sinthome é o quarto elemento do Nó Borromeano, a topologia suporte do sujeito do desejo. É o que possibilita a esse sujeito do desejo ser gozante, falasser, aquele que goza! Nó Borromeano são cordinhas de barbante que se enodam em torno do objeto causa do desejo, o objeto a: ali onde há a falta da falta, causa do desejo. Topos do gozo. Buraco não é Real.

Esse Nó já existia, é nomeação espanhola para uma família italiana do século XV, Brasão dos Borromeos cujas propriedades dizem a Lacan da relação entre Real, Simbólico e Imaginário, relação essa que vai ler pelas vias da teoria dos nós em matemática: propriedades das articulações das superfícies estruturadas como nó, superfícies não mais da geometria euclidiana. Na família Borromeo, cada anel remetia a uma arma da família e à tríplice aliança. Nesse Nó de armas, a falta de uma arma enfraquece as outras duas.

Sobre tudo isso versa este texto que busca ver que há Nó entre Édipo, Antígona e G.H. Aliança entre dois nomes e uma letra. O que os articula? O saber-fazer com o que lhes causa e, como o Joyce imaginado por Joyce, fizeram escolhas, versaram seus nomes.

 

  1. Pequena história do Nó Borromeano

 

O Nó Borromeano existia antes dessa família italiana e suas armas. Foi presente da família Sforza, pelo apoio político na defesa da cidade de Milão, qualquer página da história conta isso: existia no budismo, existia com os vikings. Jacques Lacan soube do Nó Borromeo no dia 08 de fevereiro de 1972, durante um jantar com a amiga que estudava matemática.  Lacan se interessa é pelo enodamento dos nós. Por que? Não se sabe, mas é possível uma hipótese. Lacan, durante mais de vinte e cinco anos falou de Imaginário, Simbólico e Real. Ele vê a consistência no brasão da família (primeira figura abaixo, à esquerda). Queria o brasão da psicanálise? Esse Nó foi (e ainda é) muito utilizado pelo cristianismo e também entre diversos outros povos europeus ao longo do tempo, como símbolo de união e força. Os cristãos rezam para ele [há um São Carlos Borromeu] e o cristianismo tem o mais potente dos Nós: o Nó da Tríplice Aliança, da Santíssima Trindade (segunda figura abaixo, à direita). Todo Nó Borromeano tem como especificidade o fato de que se cada um dos anéis for retirado, os outros três ficarão livres, sem que se forme um par. Sempre foi usado como uma tríade para representar uma Unidade. Símbolo da Santíssima Trindade cristã, foi desenhado a partir de uma ilustração do século XIII encontrada em um manuscrito francês na Cathedral de Chartres, e reproduzida no livro de um tal Didron:  Iconografia Cristã, de 1843. Lacan usou-o para ilustrar a unidade do Sujeito, porém fará uma heresia: escolhe acrescentar um quarto elemento nessa Santíssima Trindade, sua troisième ganha uma quarta dimensão, coloca o que é do homem entre os santíssimos. Sujeito da psicanálise é uma unidade? Unidade, Gestalt sempre foi um engodo para Jacques Lacan. Afinal, o que quis com isso de Nó Borromeu? Quis emaranhar a experiência psicanalítica para que o sujeito não sucumbisse ao Imaginário, ao Simbólico e ao Real. E nem a psicanálise.

Esse Nó da cristandade deve ser lido iniciando-se com a palavra unitas, no centro, e seguindo as sílabas a partir da esquerda em sentido horário: Unitas Tri-ni-tas, ou seja, Um em Três, ilustrando a Trindade dos nomes do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No Nó da psicanálise lacaniana, Lacan inverte o sentido da leitura e ali no centro, onde é unidade, é o topos do objeto a, local a ser sempre vazio.  Sujeito não será Um em Três, mas algo do tipo: apesar de três, outra coisa.

 

No brasão da família Borromeo, o Nó Borromeano aparece discretamente em um pequeno quadro azul, próximo às patas traseiras do cavalo (primeira figura anterior).

 

 

No palácio da família, descobriram os anéis ligados de quatro maneiras topologicamente diferentes, como conta curiosamente Stewart (2009, p.96):

Encontra-se o Nó Borromeano bem antes, como já dito: na arte budista afegã do século II e em algumas apresentações na mitologia grega, sempre para simbolizar a força e a unidade, especialmente na religião e nas artes (Michelangelo assinava seu M em um Nó, enodando arquitetura, pintura e escultura, colocando ali o que era dele).

Na matemática da Teoria dos Nós, um entrelaçamento Brunniano é uma trama de ligação entre três ou mais elementos geométricos que se separam caso um desses elementos seja removido, nos contando ainda Stewart (2009). O adjetivo borromeano deriva do artigo Über Verkettung (Sobre entrelaçamento), escrito em 1892 pelo matemático alemão Hermann Brunn. O nó borromeano é um caso particular, onde o entrelaçamento é de três elementos circulares.

No Almanaque das Curiosidades Matemáticas (Stewart, 2009, p.96), aparece a pergunta: “Por que és tu, Borromeu?” Porque tu és topologicamente distinto e existe em aliança: um não existe sem o outro, tu só existes com o outro. Contudo, para Lacan, o jeito de saber-fazer com isso é particular, de cada um: pelas vias do sinthome, o quarto elemento nesse Nó de três onde o sujeito existe para além desse outro e dessas alianças.

Todo sujeito é estrutura de três elementos. Imaginário, da formação do eu onde se inscreve a primeira identificação e a linguagem vem fazer corte nesse engodo da semelhança, quando o sujeito a vir-a-ser constata que a imagem que o identifica vem do olho do outro. Precisa fazer com isso. Simbólico, onde a linguagem que lhe pré-existe cinde a unidade, inscreve a falta e determina a impossibilidade de seu desejo por um objeto não nomeável, o saber é não-todo. Precisa identificar-se na alteridade. Real é o impossível de abordar, o inefável, o indizível, o que atravessa essa estrutura e, desse atravessamento, o sinthome, o saber-fazer.

Só pode ser Nó de três: Real, Simbólico e Imaginário estruturam um sujeito, o singular em uma estrutura universal de linguagem que pré-existe. Mas, isso que é três precisa que dele mesmo se faça um quarto elemento: sinthome. Esse enodamento gira em torno da falta da falta, do objeto a. Entre Simbólico e Imaginário, o sentido, a inibição. Entre Imaginário e Real, a angústia, o Gozo do Outro Barrado, o desejo. Entre Real e Simbólico, Gozo Fálico. O sinthome enoda esses elementos: é o particular do sujeito.

 

  1. Da primeira vez do Nó

 

Para Lacan, o Nó Borromeano lhe permitiu amarrar as três orações que escrevem o amor: Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso, no Seminário 19 …Ou pire. Le savoir du psychanalyste (1971/1972). Essa frase só é possível como um todo, pois se retiramos uma de suas partes, um de seus verbos, ela se desfaz. É nesse momento da lição 5, desse Seminário, de 09 de fevereiro de 1972 (um dia depois do referido jantar quando a amiga lhe conta sobre o Nó) que Lacan irá, pela primeira vez, apresentar o Nó Borromeano para mostrar o enodamento dessas orações quando trata da lógica e diz que, nesta, também, o Real faz impasses. Fala da letra do amor, la lettre d’a-mur.

Escreve no quadro a frase em duas línguas, o traço e a fonética chinesa e na conhecida língua francesa:

 

 

 

 

 

 

 

 

 蓋 非 也    請  拒 收     我    贈

                                          gài     fēi        yě          qǐng       jù       shōu           wǒ          zèng.

                                [Je te demande de me refuser ce que je t’offre, parce que c’est pas ça.]

 

Nessa letra, três dimensões: Imaginário, Peço-te que me recuses {eu e tu, do espelho}; Simbólico, o que te ofereço {desejo como desejo do Outro}; e Real, porque não é isso {na negativa}. No final da aula, depois de dizer de uma lógica tetrádica para essa letra do amor, ele diz sobre a função da topologia, amarrar essa lógica:

“(…)que les armoiries des BORROMÉE.

[Primeira vez do Nó]

Si vous copiez bien ça soigneusement – j’ai pas fait de faute – vous vous apercevrez de ceci : c’est que – faites bien attention – celui-ci, le troisième, là vous le voyez plus – vous pouvez faire un effort comme ça, c’est accessible – vous le voyez plus. Vous pou­vez remarquer que les deux autres, vous voyez, celui-là passe au-dessus de celui de gauche et il passe au-dessus aussi là. Donc ils sont séparés. Seulement à cause du troisième, ils tiennent ensemble. Ça, vous pouvez faire l’essai pour faire… si vous avez pas d’imagination faut faire l’essai avec trois petits bouts de ficelle. Vous verrez qu’ils tiennent.”

Essa citação de Lacan é aqui literal, não precisa ser traduzida, é apenas a mostração de que La troisième é sobre o que não se sabe e que nos move. Esse enodamento é por não saber o que nos causa, nossa incompletude. O não-todo que nos determina.

Assim, qual aliança em torno disso fizeram três sujeitos tão bem nomeados como Édipo, Antígona e G.H. Por que são eles, Borromeus?

 

  1. Édipo e Antígona

 

O brasão dos Borromeos é consistência de uma família, seu nome, suas armas. Um nome é uma arma e como arma acaba por matar. Antígona tem seu brasão, um nome. Sua árvore genealógica é magnífica, vem da realeza grega e dos Deuses gregos. The Royal House of Thebes[3] nasce com o nome de Agenor, que gera Europa e Cadmus. Cadmus gera Polydorus, Semélê, Zeus e Agavê. Agavê gera Pentheus. De Semelê e Zeus nasce Dionysus. Polydorys gera Labdacus que gera Laius. Menoeceus gera Creon e Jocasta. Creon e Eurydice geram Megareus e Haemon. Jocasta e Laius geram Oedipus. Jocasta e Oedipus geram Polyneices, Eteoclês, Ismene e Antígone.

Vale lembrar que Antígona ia se casar com Haemon, filho de Creon, portanto, herdeiro do trono de Thebes. Mulher de predestinações. Mas, nas linhas que a amarram na herança de seu nome pode se imaginar uma transversal: ali, no lugar da mãe e da mulher, um embaraço, ou duas retas, uma indo na direção do pai e outra na direção do filho.

Ao responder ao “Quem tu és?”, pergunta similar a “Que queres tu?”, o sujeito carrega pedaços perdidos do que lhe causa, dessa gênese de nomes, de predicações.

Antígona e Édipo, seu pai, o Rei de Tebas, são esculpidos juntos, se arrastando um sobre o outro. Amarrados um ao outro. Joyce, louco, escreve letra, pois se continuasse escrevendo verbo e significantes bem se estraçalharia como Édipo e Antígona: furaria os olhos e iria cumprir seu destino, a morte como preço de gozar.

Vejamos o que nos mostra, sobre esses dois mitos, a escultura “Oedipe Roi”, de Rudolph Tegner (1873-1950)[4], onde temos Antígona acompanhando seu pai no caminho do exílio, indo a Colono, lembrando que as esculturas congelam movimentos, congelam ausências:

 

São dois corpos em movimento e Antígona é aquela que carrega, no final das contas [do preço a pagar], o peso do nome-do-pai. Esse pai que não é qualquer um: é Édipo Rei. Esse pai não deixa Antígona ir-se, joga-se sobre ela: Nó Borromeano desse pai de olhos arrancados. O Oráculo disse que Édipo iria matar seu pai, casar com sua mãe e ser Rei. Faz isso porque tudo sabe, o saber é sua arma, seu engano. Por isso Lacan escreveu um quarto Nó: três não sustenta um sujeito. Édipo, a seu modo, subverte a lei. Édipo cumpre seu destino, não conseguiu fazer outra versão dessa imaginária predicação, dessa imaginária nomeação: foi o que disseram as palavras. Sem corte nesse engodo, o Real furou-lhe os olhos.

A filha dessa profecia que se cumpriu (Tu, Édipo, és aquele que matará o pai, casará com a mãe e será Rei, disse-lhe o espelho) vai arrastar esse nome, esse pecado, sua predicação. Quem és tu, Antígona? Escolhe, arrastada, melhor dizendo, atraída por esses olhos furados, nomear-se filha de Édipo Rei. Antígona vai falar e gozar ao ser engolida pelos buracos na face de Édipo. Essa mulher filha de mãe morta pela letra do amor vai herdar do pai o saber em subverter as leis. A filha do incesto, de um amor que seguiu sua regra, subverte a lei de Creonte, do rei: nasceu para subverter. Amarra-se em um simbólico da mais alta envergadura: reconhece a lei para subvertê-la. Coisa que o pai não fez: não reconheceu a lei, subverteu-a na credulidade da imagem de um rei. Não nos enganemos, Antígona não é resignada a este nome. Dos filhos de Édipo, apenas Antígona, uma mulher, irá saber-fazer com esse nome, antes da morte: transgredirá as leis da Grécia, será uma heroína para aqueles que habitam a República do Gozo. Essa subversão está, para sempre, escrita no texto de Sófocles (2013, p.33):

 

Creonte: E tu, tu que baixas a cabeça,

Admites ou negas que procedeste assim?

Antígona: Admito, não nego nada.

Creonte: Tu, podes retirar-te para onde queres,

de acusações condenatórias estás livre.

E tu, declara sem rodeios, sinteticamente,

Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?

Antígona: Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.

Creonte: Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?

 

Pergunta, convenhamos, de um rei tolo, daqueles que não sabem o que é um sujeito do desejo e que goza e para quem a morte é lucro. Dirá, ainda, Antígona a Creonte:

Antígona: […] Quem vive num mar de aflições iguais

às minhas, como não há de considerar a

morte lucro?

Defrontar-me com a morte/não me é tormento. Tormento seria,

se deixasse insepulto/ o morto que procede do ventre

de mina mãe. Tuas ameaças não me atormentam.

Se agora te pareço louca,

pode ser que seja louca aos olhos de um louco. (SOFÓCLES, 2013, p.34)

 

A aflição é gozo e, sem corte nisso que transborda, a morte não é o pior.

O que mais intriga Lacan, em Joyce, é esse louco que não enlouquece, ao contrário do que faz Édipo, mas que também não escolhe a morte, como faz Antígona: o que suporta essa estrutura psicótica, um sujeito que em seu desejo estaria alienado ao Outro? O que amarra esse sujeito em si mesmo, desamarrando-o do Outro? Tal como Joyce, Antígona bem poderia ser louca sem ter enlouquecido, pois era filha de um pai sem lei.

Édipo, que foi Rei por saber o enigma, decifra o que não era para ser decifrável [afinal, decifra-me ou te devoro era para ser uma brincadeira, para ficar no joguinho do amor].  Cegou-se por não saber da mãe como a mulher de Laios, que era seu pai. Esse Laios foi também pai morto. Mas, o que Édipo fez foi não recusar o destino de todo menino, cujo primeiro e único amor é sempre a mãe, dirá Freud. Quando arranca os olhos, o que queria arrancar de si? A imagem de si no olho da mãe, imagem de um amor infindável do qual ele sabia ser impossível se livrar. Depois que Jocasta se mata, ele perambula em desamparo. Édipo não sofria pela vergonha, por ter descumprido a lei fundamental da civilização, a lei do incesto. Sofria, ancião, por amor, isso sim, por não ter mais a mulher-mãe que amou e possuiu: não foi de vergonha e culpa que morreu, essa é a moral do mito, morreu como Romeu, por amor da amada, ficou se espiando em vida e seu lamento é por não tê-la mantido viva, pois ele, que tudo sabia, não soube fazer isso. Sofria da dor de todo mundo.

Antígona não nega esse nome, porque sabia que era filha do amor e não da negação da lei, do crime. Antígona o sabia. Vale lembrar que Antígona poderia ser rainha se negasse esse nome, afinal era a prometida de Hémon, filho de Creonte: escolhe seu nome e, nesse momento, vai além do pai por não querer ser rainha. Mas é preciso atenção, nesse ponto: sua escolha é não por simplesmente enterrar o irmão morto, é um ato para enterrar seu nome: primeira morte, aquela do simbólico. Ao final, vai morrer tentando e isso é literal, porque também herda da mãe algo que a define: matar-se. Segunda morte, do Real. E, assim como subverte a lei, também vai morrer-se de outro modo, por amor ao nome de Édipo Rei, letra do amor.

É isso? Aos sujeitos trata-se de cumprir seu destino sempre, de algum modo, anunciado por um outro, em nome do amor a esse outro? Édipo vai carregando sua ficção até o fim: velho, arrasta-se por Colono, banido e culpado, envergonhado, edipiano. Mas, o que fez Antígona, além de questionar a ordem de uma nação e morrer? Fez tudo, ficando ali entre o Real e o Simbólico. No pai e na filha, uma marca nesses mitos: ambos parecem cumprir seu destino. Em Édipo, seu desejo foi seu destino. Em Antígona, seu gozo foi seu destino, por direito de ter sido filha do desejo, morre como aquela que foi piamente piedosa e imunda.

 

  1. G.H. que atravessou uma barata

 

G.H. não é um nome.  O que é um nome?  Do latim Nomen, do grego Onyma ou Onoma, é a palavra usada para identificar uma pessoa e, geralmente, vem como duas palavras. A primeira identifica o ser e a outra vem do latim Proprius, privado, de si mesmo, que gerou também propriedade.  Édipo, Rei de Pé Inchado, tem dois nomes, Édipo Rei, que o identifica por meio do Tu és isto, o Rei e como predicado é aquele que tudo sabe, seu nome é nome do engodo imaginário. Antígona é Antígona, Filha do Incesto, nome que a identifica pela diferença [melhor haver simbólico] e a predica como faltosa: tem a letra da falta que traça seu destino.

G.H. não se decifra, não é identificada. G.H. não tem identidade. Parafraseando Lacan ao falar do Stephen como o Joyce que Joyce imagina, no retrato de um artista quando jovem, G.H. bem pode ser a Clarice que Clarice imagina, em sua letra. Clarice que tinha um cão chamado Ulisses. Esse nome Ulisses é a versão metafórica do Joyce que Joyce escreve em significantes. Finnegan é a versão indizível do Joyce que Joyce faz letra.

Aos olhos de Antígona, G.H. é covarde. Ela mesma se declara covarde. Não tem coragem de dizer seu nome, pois só tem duas pernas, falta-lhe a terceira perna: “essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la” (LISPECTOR, 2014, p.10).

Sem nome, esse sujeito se suporta como? O que sabe-fazer sem uma terceira perna? Sem nome não há lei para subverter. Não há nome-do-pai para arrastar.

G.H. estava sem o que fazer. Melancólica. G.H. é mulher. G.H. é sujeito não determinado, é feminino. Entra no quarto da empregada que foi demitida para fazer uma faxina nesse quarto. Sabe-se, com isso, que G.H. é a senhora que vai ocupar a posição da escrava. A identidade, sua “primeira aderência” lhe é proibida: “A identidade me é proibida, eu sei. Mas vou me arriscar…” (LISPECTOR, 2014, p.104). Entra no vazio, adentra para um espaço onde a ex-sistência não tem sentido, onde não há como se enganar e não há sentidos. Do armário sai uma barata. Armários se abrem para outras superfícies, como um buraco. Uma barata advém desse vazio, onde nada havia para fazer.  G.H. é colocada a trabalho: saber-fazer com essa barata, seu sinthome. Parece louca, o tempo todo. Não sabemos. Mata e come a barata, e vai deixando pistas disso que somente ela sabe e faz. Em outro lugar, há alguma coisa que é preciso ser dita. G.H. fala e goza: “Se eu não disse é porque não sabia que sabia – mas agora sei” (LISPECTOR, 2014, p.125). Mas, G.H. sabe como Édipo e como Antígona? Não, podemos apostar, pois ela come a barata:

 

Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha pureza fácil. O antipecado. Mas a que preço. Ao preço de atravessar uma sensação de morte. Levantei-me e avancei de um passo, com a determinação não de uma suicida mas de uma assassina de mim mesma (LISPECTOR, 2014, p.174).

 

Atravessou a morte, depois de olhar pelo buraco. Aqui, seria ainda G.H. covarde diante da voraz Antígona? De fato, a escolha de cada sujeito é uma escolha de saber-fazer consigo mesmo, escolha sempre mórbida, pois é escolha atraída pela falta: ética do sujeito.

O sinthome de G.H. é, por todos nós, conhecido em sua consistência imaginária: basta se lembrar de uma barata. Mas não se engane nela, pois angústia é não capturável e há um quê de angústia em todo sinthome.

Agora, G.H. é só paixões de toda ordem: ávida pelas coisas do mundo, tem desejos fortes e definidos, conta que à noite irá usar não o vestido azul, mas o preto e o branco, irá comer e dançar. “Mas ao mesmo tempo não preciso de nada”, ela diz (LISPECTOR, 2014, p.185). G.H. nos informa, então, o que foi isso de atravessar a morte:

 

A despersonalização como a destituição individual inútil – a perda de tudo o que possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. Tudo que me caracterizava é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim. Assim como todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de todas as mulheres. (LISPECTOR, 2014, pp. 185-186)

 

G.H. nos conta que esse é o ‘verdadeiro trabalho’ do sujeito: se deseroizar (ela diz deseroização, significante que Clarice inventa), compreender que a “vida em mim não tem meu nome” (LISPECTOR, 2014, p.187) e que desistir é uma revelação. G.H. vai, pelas paixões, se enodando, fazendo suporte de si mesma, sem predicar-se.

 

Amarrações no Brasão de Édipo, Antígona e G.H.

 

Na conversa entre Antígona e G.H., quando esta dizia à outra que fizera o ato proibido de tocar no que é imundo, e G.H. viu Antígona lhe responder que o ‘melhor’ era fazer a escolha pelo imundo, pelo nome do pecado e não se atormentar, há uma torsão.  G.H. conta a Antígona que escolher se atormentar para fazer outra coisa com isso que lhe causa não é pecado. Reviravolta diante da heroína de Tebas que estranhará, sempre, como um sujeito pode vir-a-ser sem ser herói, sem um eu identificável e um desejo não nomeado. Afinal, o que restaria ao sujeito da tarefa de subverter o mundo, enfrentar a ordem, recusar-se à subordinação, ao engano? Conforme as pistas de G.H., escritas nas letras de Joyce, é isso: a tarefa é saber-fazer com o que resta, e o que resta não tem nome.  G.H. encerra a conversa dizendo à filha de Édipo Rei e Jocasta: “Antígona, transgrida a lei de Creonte e o mundo, deixe de se arrastar agarrada a seu pai, subverta seu nome e não se suicide, atravesse a morte”.

Sinthome se parece com isso: o que cada um de nós inventa como suporte de nós mesmos, que faz laço em si mesmo. Jacques Lacan enlaçou sua psicanálise nesse Nó Borromeano para fazer dela não sentido, de gozo barrado, de uma amarração epistemológica em torno de um objeto que é por não tê-lo. Na experiência de análise, o que temos de ler são as pistas desses sujeitos que vão cerzir seus nomes com a marca de Édipo, a escolha de Antígona e a destituição subjetiva de G.H. e, como Nó, não há um sem o outro, cabe ao sujeito amarrar tudo isso.

Nessa letra do amor, não se sabe bem quem pede e quem recusa e, mais ainda, não se sabe o que se pede e o que se recusa. Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso [o que desejo]: Édipo não recusou o que lhe foi pedido, Antígona escolheu ficar entre a afirmação e a negação do desejo e G.H. não é isso.

Uma barata, advinda da garganta de Irmã, ou do armário da empregada, enoda essa ficção, segundo G.H. e sua paixão. Tu és Borromeu fazendo outra versão de teu nome!

 

REFERÊNCIAS

LACAN, Jaques. …Ou pire. Le savoir du psychanalyste (1971-1972). Disponível em: < http://staferla.free.fr >. Consultado em: 21/10/ 2016.

 

______. Le Sinthome (1975-1976). Disponível em: < http://staferla.free.fr >. Consultado em: 30/09/2016.

 

______. Seminário, Livro 23. O sinthoma (1975-1976). Trad. Sérgio Laia. Rrev. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

 

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

 

SÓFOCLES (498 a.c. – 406 a.c.) . Édipo Rei. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L & PM, 1999.

 

______. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L & PM, 2013.

 

STEWART, Ian. Almanaque das curiosidades matemáticas. Trad. Diego Alfaro. Rio de janeiro: Zahar, 2009.

 

 

[1] Neste texto, todas as citações de Jacques Lacan, em francês, foram retiradas dos referidos Seminários publicados em http://staferla.free.fr/.

 

[2] Encontra-se, no texto em francês a sentença “qui s’atteste de l’ex-sistence-écrite de la même façom: x, trait de union, s – de l’esistence du sexe”. É a equação do sujeito com o vazio, formalização da ex-sistência-escrita onde o sujeito existe por se escrever em torno disso que lhe é causa. Desse modo, escrevo ex-creve e ex-crita como fazer dessa “ex-sistência-escrita”, ex-crita da impossibilidade. Seminário Le Sinthome, Livro 23, Aula de 20 de janeiro de 1976.

 

[3] Descrição feita a partir das informações retiradas de https://www.timelessmyths.com/classical/thebes.html. Consultado em 20/10/2016.

 

[4] Imagem retirada de http://cop223.tumblr.com/post/81994953213/oedipus-and-antigone-rudolph-tegner. Consultado em 20/10/2016.