“Psicanálise sem Édipo?”, enquanto DORA FAZ A RODA GIRAR…E GOZA!

Por Cirlana Rodrigues

Associação Hæresis de Psicanálise

Introdução 

“Psicanálise sem Édipo?” é a questão-efeito do livro dos psicanalistas Philippe Van Haute e Tomas Geyskens (Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan, Autêntica, 2016, 205p. Tradução de Mariana Pimentel Fischer). Com vasta produção na área de estudos que convergem psicanálise, filosofia e antropologia, portanto, convergem, o pathos, os processos lógicos de reflexão e compreensão da vida e da existência do homem, os autores, nessa obra, propõem uma clínica construída a partir dessa convergência. Primeiro, convergência não é a proposição de um novo campo discursivo que contemplaria a experiência de vida e seus modos de expressão cultural e de sofrimento: é trabalhar em torno dos pontos de tensão impostos por esses aspectos e, como veremos, são nos pontos de tensão na obra de Sigmund Freud o locus desse trabalho. Segundo, “clínica” se refere à tríade da escuta dessa experiência naquilo que tem de universal, de singular e de particular, de cada sujeito. Noção essa que na antropologia clínica iria além de definições estruturais e psicossexuais da psicanálise, discursivas da filosofia, enunciativas e gramaticais dos estudos da linguagem, e sociológicas, entre tantas definições sobre o que é ser sujeito: trata-se exatamente da não possibilidade de definições, da não predicação imaginária de indivíduos e simbólica de sujeitos. O que se é se aproximaria ali onde essas predicações se esgotariam.

Nesses termos, a referida obra é atual, pois estes tempos nos convocam a sair da comodidade de compreender a existência humana por meio de uma psicopatologia fundamental que se manifestaria de modos diferentes, porém que tendem sempre à explicação do que acontece, deixando de lado a narrativa e descrição dessa existência, tempos que nos convocam a não perder de vista que o ‘sujeito’ de nosso ainda insistente divã é o mesmo que caminha pelas ruas e para qualquer lado, tempos que nos convocam diante do desabamento da ordenação política e social, onde o político perde toda sua função de representatividade e o social é um campo minado de forçada homogeneidade, são tempos em que a sexualidade perde sua segurança como conceito epistemológico dentro dos campos e passa a ser ato de sujeitos imbuídos na defesa de seu desejo e do corpo que supõem que têm, resistindo não mais a algo como uma repressão, nosso tempo é um tempo de opressão: no primeiro deixa-se no sujeito a inscrição de seu desejo a ser reprimido, no segundo busca-se o apagamento dessa condição de desejar. No que concerne ao campo psicanalítico, nos parece mais produtivo escutar tudo isso (tal como fizera Freud e Lacan) do que o trabalho de defesa do campo psicanalítico, na medida em que esses “novos sujeitos” colocam em xeque os fundamentos de uma psicanálise fundamental, aplicável, normativa e, porque não, lida ainda pelo leitor/comentador do século XIX e do século XX.

Van Haute e GeysKens (2016), por meio de uma leitura cuidadosa e minuciosa dos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, vão localizar, na tradição epistemológica da psicanálise, os argumentos para a tese de uma “antropologia clínica”, ou a “patoanálise”, esta depreendida da leitura patoanalítica feita por Jacques Schotte, em Szondi avec Freud (1990) que se sustenta na desconstrução que Freud faz à distinção entre normalidade e patologia, por meio do princípio do cristal, mostrando que as diferentes formas de manifestações patológicas na verdade correspondem a diferentes manifestações de disposições comuns a todos os seres humanos. Os autores vão defender essa tese lançando mão das tensões no discurso freudiano e lacaniano, nisso que foi sendo elaborando a partir da resistência por meio do desejo pelo desejo insatisfeito na histeria, de não se deixar encerrar a questão do sofrimento humano nesta ou naquela resposta normativa e cultural,  esta escrita na psicanálise pela noção de “Complexo de Édipo”: regulação do desejo, regulação do sofrimento, regulação das possibilidades das experiências em torno dessas questões, imposição de respostas à partilha dos sexos, regulação do “quem somos” e, ainda, regulação da própria técnica psicanalítica e de seus objetivos, por vezes de ajustamento por meio, por exemplo, de recursos de se analisar fantasias a partir dessa noção, de compreender a transferência como revivência dessa identificação…

Neste ponto, vale chamar a atenção do leitor da obra aqui resenhada para o número de notas de rodapé: fazem função de costurar a tese à letra freudiana e lacaniana. Van Haute e GeysKens (2016) escrevem o livro e vão nos mostrando os pontos de tensões localizados no textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, fazendo uma cartografia entre o conflito iniciado no encontro de Freud com Dora, a entrada em cena do velho Édipo-Rei, as investigações de Jacques Lacan que, mesmo pelas vias estruturais e simbólicas, ainda não se desvencilha de uma predicação, passando pelas proposições dos quatro discursos, para tão somente fazer ver o sexo, a sexualidade, o desejo, o pathos nas fórmulas da sexuação. A interpretação que os autores fazem dos textos freudianos e lacanianos não pode ser vista como o encobrimento desses textos com sentidos que os adequariam à suas tese. Interpretar, no caso, é fazer perpetuar essa tensão de Freud e Lacan, sempre insatisfeitos com as respostas prontas e que encerrariam a problemática do pathos na experiência humana. Tal como “as histéricas de Freud”, é preciso não se satisfazer com a resposta.

A pergunta “Psicanálise sem Édipo?” não é feita pelos autores ao longo do livro, é inferida ante a possibilidade deixada por Freud em seu trabalho com as histéricas. Cabe ao leitor fazer como os autores, respondê-la levando-se em conta nossa ética como psicanalistas que passa por compreender a experiência subjetiva como resposta ao real, invenções ante aquilo que seria, de fato, o universal humano: a não possibilidade de completude, isso que nos acomete de modo impressionante e que não conseguimos nomear.

O livro é dividido em uma introdução, seguida de oito capítulos, a conclusão e as referências. Destaque para essa estrutura que se repete, onde cada um desses elementos responde por um tema em torno da proposição maior do livro: as noções e questões epistemológicas fundamentais à antropologia clínica. Podemos destacar as temáticas que perpassam toda a obra: a “disposição orgânica” para a polimorfia sexual, cuja saída histérica é o conflito em relação à bissexualidade e a repulsa ao sexo, repulsa como resistência à posição subjetiva de objeto de troca nas estruturas patriarcais, nossos sintomas, nossa psicopatologia como exageros desses conflitos; a relação estabelecida entre histeria, neurose obsessiva e paranoia com construções culturais e sociais como a literatura, religião e a filosofia, onde se vê como os elementos lógicos desses modos de experiência dos sujeitos também organizam essas expressões culturais; a compreensão da psicopatologia onde o sofrimento subjetivo é a expressão de modo exagerado daquilo que é comum a todos nós, onde sintomas delineiam os traços caricaturais de cada um de nós e, desse modo, não podem ser compreendidos fora dessa experiência, fora dessa antropologia [clínica]; em relação a isso, como pensar uma metapsicologia que não explique esse sofrimento por meio de noções normativas, deterministas que tendem à superação e ao apagamento, à adequação desse que sofre, correção de seus traços caricaturais?; como localizar isso nas manifestações contemporâneas de arte, de pathos, de sexualidade? Os autores vão nos mostrar o equívoco que foi, e ainda é, para a psicanálise em se tomar o “Complexo de Édipo” como determinante da patologia, como normativo da sexualidade e das identificações e aquilo a ser tratado. Essa visada edipiana sobre de que sofrem as pessoas, sobre seus conflitos em existir neste mundo, retira do pathos sua lógica de paixão, de excesso e exagero, de afetos, reduzindo o sofrimento a assujeitamento, algo que poderia ser apagado, curado, corrigido.

 

Cartografia da obra

 Passamos a discorrer sobre o modo como Van Haute e GeysKens (2016) desenvolvem sua tese sobre a proposição de uma antropologia clínica.

Na Introdução – Uma antropologia clínica da histeria/A histeria como um problema filosófico, os autores argumentam que a histeria, interesse da psicanálise, nos leva a confrontar questões sobre a existência humana também de interesse da antropologia e da filosofia. Os fundamentos psicanalíticos sobre a histeria e o que esta coloca em pauta serão retomados como aquilo que concerne a toda a experiência e existência humana e não apenas a um quadro clínico patológico. Esses fundamentos serão perseguidos nos trabalhos de Freud e Lacan, onde para o primeiro a histeria (o discurso da histérica) tomou aspecto fundador por distanciar a psicanálise da perspectiva neurológica, colocando a reflexão filosófica em torno da relação corpo, subjetividade, sexualidade, cultura e sintomas. São centrais os textos de Sigmund Freud Fragmentos da análise de um caso de histeria (o caso Dora, 1905a), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905b), Chistes e sua relação com o inconsciente (1905c), Um caso de neurose obsessiva (o caso do Homem dos Ratos, 1909). Uma “Psicanálise sem Édipo?” será elaborada em torno do texto Fragmento da análise de um caso de histeria (1905a) e do texto Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina (1920), trabalhos onde se inscrevem a tensão freudiana ante a disposição humana e a não normativividade sobre o desejo, e cujo desenvolvimento caminha para a relação com os modos de expressão dessa tensão: Freud não  consegue impor, pela resistência própria da histeria, a determinação edipiana na análise tanto de Dora como da Jovem Homossexual, essa determinação aparece e serve bem ao Homem dos Ratos.

Os autores destacam o que estará em jogo ao longo da obra, na proposição da antropologia clínica: a constitutiva relação psicanálise e histeria; o próprio método da psicanálise e seu inaceitável potencial de cura (não se cura o sujeito de si mesmo e nem de sua existência); uma problemática que nos parece das mais importantes e que Freud, nos vestígios iniciais de uma patoanalítica, rechaçou e que diz respeito à distinção entre normalidade e patologia, pois o pathos é o exagero caricatural do que é comum a todos os humanos e tem a ver com cada um; nessa mesma importância, a distância necessária entre a patoanálise e a psicologia desenvolvimentista, onde a patologia seria entendida como um distúrbio do desenvolvimento; essa psicogênese foi sustentada pela teorização de Freud em torno do Mito de Sófocles, o Édipo-Rei, onde passar pelas questões edipianas seria o meio para uma vida adulta saudável e resolver conflitos seria resolver esse complexo edipiano:  o problema é a carga normativa e patológica que a leitura freudiana desse mito carrega.

Van Haute e GeysKens (2016) nos deixam, nessa Introdução, três proposições que não se esgotam em sua obra, mas que inscrevem um campo importante em elaboração. A saber: i) “afirmar que neuroses são expressões excessivas de disposições comuns a todos os seres humanos significa também dizer que seus equivalentes culturais são fenômenos antropológicos fundados na vida pulsional humana” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.25); ii) “a possibilidade e a importância de uma metapsicologia psicanalítica não edipiana” (Van Haute e GeysKens, 2016, p. 26) e; iii) “a importância filosófica da psicanálise talvez esteja (e especialmente?) em outro lugar [que não reduzida à noção de inconsciente e sexualidade]. […] A originalidade filosófica do trabalho de Freud (e da psicanálise, por extensão?) reside na centralidade do princípio do cristal e na consectária revisão fundamental da relação entre normalidade, cultura, e patologia” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.29). Sobre esse encontro entre psico, patologia e cultura não se trata de um determinismo, pois isso seria o mesmo trabalho da determinação psicogência pensada na metapsicologia edipiana, como veremos.

A partir disso, os autores começam a cerzir o percurso de elaboração da patoanalítica.

No Capítulo 1 – Entre trauma e disposição /A específica etiologia da histeria nos trabalhos iniciais de Freud, Van Haute e GeysKens (2016) nos mostram como, na tradição psicanalítica, é um equívoco o mito de que o trauma real, na teoria da sedução, foi substituído por uma fantasia edipiana, na etiologia da histeria, pois isso esconde as tensões produtivas na teoria freudiana das neuroses no que concerne às relações entre fatores constitutivos [disposições inata] e acidentais [experiências de vida]. É possível creditar aos autores a ênfase de que essa tensão é permanente na história do campo psicanalítico. Para eles, Freud desenvolveu a patoanálise da histeria, uma psicanálise sem Édipo e que a análise da histeria nos mostra como as manifestações psicopatológicas dizem de disposições comuns a todos os seres humanos, o que foi escondido em nome de uma psicanálise com Édipo.

De início, destaca-se que a histeria não é uma condição patológica, essa disposição é comum a todos os seres humanos. Nos seria comum: a excessiva sensibilidade corporal, onde o corpo é parte dos acontecimentos, a questão da bissexualidade e a tendência a rechaçar o prazer sexual (uma espécie de repulsa ao sexo em que a histérica é usada como objeto, assim funciona como uma resistência, mas também, é uma resistência aos efeitos da paixão, antevendo aí o que Jacques Lacan irá constatar sobre a impossibilidade de se ter o objeto de amor) e a propensão para os devaneios e sonhos ‘acordados’, esta como o recurso da bela narrativa na histeria, assim narramos nosso sofrimento. Da teoria da sedução, nos Estudos sobre a Histeria (1985) à neurose obsessiva do Homem dos Ratos, brinquedinho sexual de suas babás, Freud não substitui o trauma pelo Édipo, mas fez ver que, conforme os autores, “Diferentes experiências de confronto com a sexualidade são determinadas por diversas disposições” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.47). Todavia, continuam os autores a nos mostrar que a teoria do trauma não sustenta a proposição de uma antropologia clínica.

De fato, o fundamental nesse capítulo é que Van Haute e GeysKens (2016), também lendo o revisado texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905b), revisado por Freud até alcançar um texto sobre o desenvolvimento edipiano e psicossexual, modos de normatizar o que ele mesmo havia constatado – a polimorfia sexual de todos nós -, delineiam as questões universais colocadas pela histeria à psicanálise, antropologia e filosofia, e que dizem respeito às escolhas de objetos e identidades sexuais que são fundamentadas no encontro entre a disposição universal do ser humano, o problema da bissexualidade e multiplicidade original do desejo e seu recalque que tomam dimensão caricatural e de exagero na histeria.

No Capítulo 2 – Dora/Sintoma, trauma e fantasia na análise de Dora,  Van Haute e GeysKens (2016) situam o texto de Freud Fragmentos da análise de um caso de histeria (1905a) como o caso clínico da patoanálise, caso onde as referências ao Édipo são marginais, onde os autores concluem que o Édipo, a repressão do desejo é apenas um sintoma reativo, há muito mais em cena no jogo amoroso entre Dora, o Sr. K, seu pai e a Sra. K. Uma leitura edipiana tendenciosa apaga o fato de que Dora, seu trauma sexual, foi antes um fato de assédio sexual (pensando na cena do lago) e que Dora vai denunciar, pela deflagração de seus sintomas, esse assédio.

Na bela narrativa que fazem do texto freudiano, os autores nos mostram a dinâmica libidinal e sexual de Dora e como sua repulsa ao sexo, ao órgão sexual masculino não determina a escolha sexual, que o trauma, os sintomas e as fantasias de Dora não necessitam de Édipo para serem compreendidos, seus sentidos não são dados pelo desejo ao pai que precisa ser reprimido. O Édipo, no romance Dora, é mais um tema e não sua explicação. Não é por causa de um desvelamento de um ‘recalque orgânico’ a ser interpretado por Freud que Dora interrompe o tratamento (pois, o caso na verdade são fragmentos). Segundo os autores, essa interrupção foi por causa da “inabilidade [de Freud] para realmente compreender a importância da ligação homossexual de Dora com Frau K.” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.65). Freud mesmo reconhece, nesse texto, a predisposição à bissexualidade como um fator determinante na histeria, tese central nas teorias freudianas sobre a sexualidade que têm o mérito de sempre ir na direção oposta de toda e qualquer definição natural sobre a sexualidade, o que no mínimo é resultante do conflito entre uma disposição e a cultura.

Na sequência, os autores entram na dinâmica da histeria, seu investimento libidinal e suas escolhas sexuais, ante a constatação dessa bissexualidade. Vale um parêntese para dizer que esse fator bissexual, como elemento discursivo, se sustenta ainda na diferença sexual orgânica que em si é uma determinação cultural: homens são os que têm pênis e mulheres são as que não têm pênis e, ainda mais, basta ver que no significante “pênis” não há nada que o ligue ao órgão sexual que representa, trata-se de uma convenção social e cultural, o masculino e o feminino, como alteridade, se distancia desse nascimento naturalizado, porém não deixa de ser uma lei. Sobre essa dinâmica da histeria, passam a ser sobre ela todas as elaborações seguintes, tanto em Freud, como aquelas que os autores vão mostrar na leitura do texto sobre a Jovem Homossexual, como em Jacques Lacan, onde veremos a recusa histérica como resistência a ser objeto de troca nas estruturas elementares de parentesco, seu amor como amor cortês, reconhecendo a indisponibilidade do objeto de amor como posse, o discurso histérico como aquele que enlaça o mestre e a sexuação, lugar de um gozo Outro, gozo feminino como existência ali fora da linguagem, portanto fora da normatização imaginária e simbólica. Os autores concluem que os desejos de Dora são desejos não edipianos, pois afinal o amor de Dora não era pelo pai: “O poder do desejo sexual, da fixação oral, da inclinação bissexual e da repulsa ao sexo são fatores libidinais constitutivamente determinados que estabelecem o destino de Dora como uma disposição, isto é, como um grupo de forças que têm o potencial de se expressar em uma sintomatologia histérica intensa, mas podem também ser sublimados em uma conversão religiosa, militância feminina ou prazer literário. Sublimações que são apenas anunciadas de uma maneira caricata em sintomas histéricos” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.69).

No Capítulo 3 – Do devaneio ao romance/sobre a fantasia histérica e a ficção literária, Van Haute e GeysKens (2016) trabalham em torno da proposição de que há, nas manifestações culturais, a mesma ‘disposição’ e organização das estruturas psíquicas. De modo específico, mostram como a ficção literária, o romance tal qual Freud o conheceu, tem o mesmo funcionamento lógico que os devaneios e as fantasias histéricas. Aqui, importante destacar dois pontos: não se trata de analisar o psiquismo do autor de um romance e menos ainda de patologizar as produções culturais humanas, e que a psicanálise, por essa relação indissociável que a antropologia clínica quer sustentar entre patologia e cultura, tem uma alma literária: a narrativa psicanalítica é uma narrativa histérica, um romance onde sujeitos alocam seu sofrimento, suas paixões, seus exageros. Os modos de cultura estão do mesmo lado que os modos de pathos, na existência humana: encontro que impede determinações únicas, limitações, definições e resistem aos modos de controle do desejo. Sobre isso, lembramos que alguns modos de cultura podem atuar no sentido contrário disso, como determinado cinema que tende a nos dizer o que desejamos e, mais ainda, nos oferecem esse objeto de desejo, como sendo possível encontrá-lo.

Os autores reforçam a importância de se compreender como Freud estabelece a relação entre patologia e realizações culturais, a partir do fato de que a histeria e seus elementos não se manifestam apenas em termos psicopatológicos e, ainda, que a histeria não é um privilégio feminino. O fantasiar histérico produz romances e, sobre isso, vale trazer a citação que os autores fazem de Freud, para mostrar o núcleo argumentativo desse capítulo três, feita em Nota de Rodapé, à página 73. Eis o que diz Freud (1913a, p.73, Totem e Tabu): “As neuroses, por um lado, apresentam semelhanças notáveis e de longo alcance com as grandes instituições sociais, a arte, a religião e a filosofia. Mas, por outro lado, parecem ser distorções delas. Poder-se-ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma obra de arte, que uma neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que um delírio paranoico é a caricatura de um sistema filosófico”. Trata-se de uma relação estética entre as patologias e as modalidades de expressão cultural.

Com isso, os autores discorrem sobre como os sintomas histéricos, o fantasiar, os devaneios, a sexualidade, os temas edipianos, o corpo sintomático estruturam e tematizam romances a partir de textos freudianos como o belo “O poeta e o fantasiar”, para mostrar que escritores bem podem ser bons diagnosticadores da civilização e que sintomas narram no corpo das histérica a psicanálise e, porque não, a psicanálise como um romance, um devaneio de um escritor, no caso de Freud: a forma produz prazer, um prazer libidinal, como nos mostram as desfigurações que crianças e psicóticos fazem com as palavras e há um estilo de cada um, no trabalho com essa linguagem que dá prazer.

A conclusão dos autores é a de que romances podem ser tomados como sublimação da histeria, de seus sintomas reativos, da bissexualidade e mostram a tensa relação entre cultura e patologia que permeia a vida dos seres humanos: “A partir da perspectiva das paixões, não há distinção real ou estrutural entre essas manifestações. […] A distinção entre psicose, neurose e normalidade, que se tornou popular em diagnósticos psicanalíticos, não pode fazer justiça à unidade dinâmica e à complexidade da histeria e de seus componentes psicóticos, neuróticos e poéticos” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.84). Como nos mostrarão ainda os autores, a própria lógica simbólica e estrutural tão cara à psicanálise elaborada por Jacques Lacan em seu retorno a Freud também acaba por estabelecer a diferença que servirá de parâmetros para estruturas e suas manifestações patológicas mediante estruturas não patologizadas como se pensa, por vezes, na neurose, esta como a boa estrutura, enquanto a psicose como a psicopatologia, como a afecção de seres humanos adoecidos: na primeira a metáfora paterna deu certo, na segunda não, uma lógica parecida com a resolução edipiana, a diferença é que no simbólico o sujeito ganha uma distinção de si, nesse encontro com o outro, e não se resume a um igual ao outro.          

No Capítulo 4 – A indiferença de uma lésbica saudável/Bissexualidade versus Complexo de Édipo, Van Haute e GeysKens (2016), depois de Dora como a tensão de Freud ante à difícil adequação da histeria à psicogênese, vão ler     Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina (1920), texto em que Freud vai do complexo de Édipo à bissexualidade: nele, o primeiro psicanalista, para nosso espanto, pois sua intenção era tratar da psicogênese da homossexualidade, ou seja explicar pela normatização edipiana desejos e escolhas homossexuais, atesta a bissexualidade, disposição comum a todos os seres humanos. Todavia, assim como Dora, a Jovem Homossexual não leva o tratamento adiante pois também vê em Freud seu incômodo deste com suas próprias conclusões.      

Destacamos, nesse capítulo quatro, o esclarecimento dos autores acerca desse universal que vai tomando formas expressivas únicas. Para eles não se trata de pensar em um caráter geral e universal para a metapsicologia que consideraria o parâmetro normativo para histeria e tomaria isso como explicação de fantasias, devaneios inconscientes e alucinações, ao contrário, a proposição da antropologia clínica busca evitar a catástrofe da expansão e generalização do complexo paterno edipiano para a existência e patologias. Segundo os autores: “Não estamos defendendo que a teoria psicanalítica tenha de se limitar ao domínio estrito da patologia e evitar formulações gerais sobre a natureza humana. A psicanálise deveria, entretanto, pensar a natureza humana a partir dos diversos problemas da neurose e sua relação com formas culturais específicas” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.89). Esse tipo de proposição é para colocar luz sobre “problemas comuns a todos os seres humanos” e não para ampliar e generalizar o modo de expressão dessa problemática como comum a toda relação neurose e formas culturais.

Freud busca saber como a Jovem se tornou homossexual. Esse se tornou estabelece a busca de uma causa. Causa que bem poderia ser, na hipótese de Freud, um trauma edipiano, e perguntar se algo é causado é supor aí um problema, o que justifica a busca da causa. Tem-se, nesse ponto da psicanálise, uma tensão importante e que merece enfrentamento, pois o que está em questão é se ser homossexual é uma condição causada, e não uma escolha da Jovem, nos entremeios de sua cultura e sociedade. A leitura que Van Haute e GeysKens (2016) fazem desse texto freudiano é precisa, pois nos mostra que nenhuma escolha sexual é edipiana e que Freud novamente se deparou com isso e, assim, é mesmo impossível negar que a homossexualidade (ou qualquer outra escolha) existe e é uma possiblidade comum a todos os seres humanos. A esforçada análise edipiana feita por Freud não resiste a essa Jovem Homossexual, sintagma que vira um nome na tradição psicanalítica como referente ao modo de como lidar com a diferença sexual.    Nesse ponto de suas elaborações Van Haute e GeysKens (2016) nos trazem uma importante observação acerca de uma possível metapsicologia que não seja explicativa e antecipada, pois “a psicanálise deve colocar de lado suas pretensões psicogênicas e etiológicas: não é tarefa da psicanálise explicar como alguém se torna homossexual, histérico, masoquista ou qualquer outra coisa” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.97). Esse tipo de proposição coloca em xeque qualquer direito a cura pretendido pela psicanálise, pois Dora reage de certo modo à sua experiência traumática porque é histérica, e a Jovem reage à sua experiência traumática porque é homossexual, o trabalho consiste em traçar o caminho libidinal, pulsional que esses sujeitos fazem em suas histórias de vida, em suas escolhas, no seu cotidiano e não em conteúdos e conceitos psicogênicos previamente determinados.

Esse quarto capítulo é encerrado com os autores reafirmando a importância da tensão entre a perspectiva psicogênica e a perspectiva patoanalítica que não deve ser tamponada e nem negada, mas levada à cena do campo psicanalítico, o que é feito pelo psicanalista francês Jacques Lacan em seu notório retorno a Freud. Com Lacan, essa tensão ganhará uma leitura simbólica que se esgotará diante do inalcançável objeto do desejo e a psicanálise ainda corre o risco de uma normatização, agora sob a égide das estruturas da linguagem e seu funcionamento significante. Veremos que Lacan nos mostrará ainda a posição de Dora nos discursos, enganando o mestre (tal como fez com Freud) e, somente depois, como o mais ainda disso, Lacan nos mostrará que o que está em cena na narrativa histérica sobre seu desejo é um gozo como o limite nada garantidor e menos ainda regulador da vida, que chama o sujeito, qualquer um, a se relacionar diretamente com cada ação, com cada desejo onde a linguagem e os sentidos se esgotariam.

No Capítulo 5 – A releitura estruturalista de Dora formulada por Lacan, Van Haute e GeysKens (2016) mostram que o psicanalista francês Jacques Lacan retornou aos pontos de tensão entre a psicogênese e a patoanálise nas elaborações freudianas sobre a histeria: O Caso Dora e da Jovem Homossexual foram decisivos na teoria freudiana e os autores nos mostram que nas elaborações lacanianas também.

Segundo eles, a interpretação estrutural feita por Lacan do Complexo de Édipo é, assim como a psicogênese freudiana, antagônica à patoanálise, como se pode depreender dos textos dos anos de 1950. Ao reler Dora, Lacan desenvolve uma teoria patológica própria e reflete sobre seu significado acerca da existência humana. O que manterá a leitura estruturalista lacaniana na contramão da patoanálise é o fato de que, na perspectiva de Lévi-Strauss, a qual Lacan se filia, trata-se de arranjos de posições de sujeitos determinadas culturalmente: Dora, nesse caso, é um objeto de troca nas estruturas elementares, conforme Van Haute e GeysKens (2016) localizam no seminário a Relação de Objeto, de Lacan, realizado no início dos anos de 1950, onde o autor francês, ao reinterpretar o Édipo freudiano aloca a problemática da histeria em termos de uma posição na estrutura relacional. No caso de Dora, mulher, posição de objeto de troca, pois o homem ao se casar ganha a mulher  de presente e  devolve esse presente com a filha. Essa investigação nas estruturas relacionais, realizada por Lacan, distancia-se também da psicogênese, pois Jacques Lacan “não pretende pensar como o desenvolvimento psicossexual de uma criança pode ser compreendido, quer sim investigar as diferentes posições em uma estrutura relacional, que determina significados e afetos relevantes em nossas vidas. Em outras palavras, o interesse de Lacan não está no desenvolvimento do sujeito, mas em seu lugar em uma estrutura” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.103). São tempos de sujeito do desejo como aquilo que um significante representa para outro significante, são tempos da alteridade, onde essa estrutura simbólica substituiria a disposição orgânica sustentada por Freud.

Ao ler o Caso Dora, é sobre o Complexo de Édipo que Lacan, segundo apontam os autores, irá se debruçar, e não sobre a disposição à bissexualidade: a pergunta, entre outras, é como interpretamos a diferença sexual? Pela presença e ausência do pênis? A diferença anatômica do sexo é uma interpretação do sujeito. Ao colocar em cena o amor, na narrativa histérica dos fragmentos sobre Dora – o que irá retomar posteriormente-, Lacan dirá sobre os primórdios do objeto de desejo, pois o amor, assim como os presentes não devem ter utilidades: eis a infinitude do desejo na histeria.

A leitura de Lacan, ao contrário da feita por Freud, não ignora o apego homossexual na experiência subjetiva de Dora, para mostrar toda a dinâmica psíquica de Dora: esta ama pelo que não pode ter, ama o pai pois ele é impotente. Ao fazer isso, no entanto, Lacan continua dentro da tradição psicanalítica de alocar a histeria na relação com o pai. Tendo em vista que as minúcias desse capítulo esgotam o objetivo de tomá-lo nesta resenha, cabe destacar que é nessa tensão em relação a como Dora tenta ganhar acesso ao seu objeto de desejo que nasce uma das questões fundamentais da psicanálise: “O que é uma mulher?”, questão essa a ser retomada e reformulada adiante, nas elaborações lacanianas. Esse enigma, ainda da feminilidade, é retomado pelo Esquema L, de Lacan, onde os autores vão trabalhar com a identificação de Dora ao pai e sua escolha de objeto, melhor dizendo, como Dora não aceita seu papel estrutural de objeto de troca.

Van Haute e GeysKens (2016) nos mostram a “típica estrutura do desejo histérico”, o desejo pelo desejo insatisfeito, recorrendo ao sonho da Bela Açougueira, que Lacan retoma de Freud, em seu quinto seminário, sobre as formações do inconsciente, dos anos de 1957 e 1958. Vale lembrar que esse mesmo seminário é onde Lacan estrutura os três tempos do Édipo e a metáfora paterna, a lei, o Outro e o falo, versão lacaniana do Édipo freudiano, segundo os autores. Na problemática do desejo de Dora e da Bela Açougueira, cada uma ao seu modo, compartilha com os outros seu objeto de desejo, mas Dora faz sintomas, pois trata-se, para a histeria, de garantir que esse objeto continue insatisfeito.

De modo surpreendente, Van Haute e GeysKens (2016) concluem esse capítulo nos destacando que a reinterpretação estruturalista do Complexo de Édipo para a questão do desejo na histeria, torna essa questão uma problemática feminina, da posição da mulher como objeto [de troca] na orda primeva e, uma normatividade acaba por invadir a relação entre patologia e normalidade, pois “O que é uma mulher? é certamente a expressão da incapacidade de algumas mulheres de reconhecer e assumir seu papel assinalado estruturalmente” (p.125). Assim a histeria continua ainda uma patologia e não um exagero a uma comum problemática humana, afinal todo desejo é insatisfeito. Dora só exagera isso em seu amor pelo que torna o desejo insatisfeito, para não nos deixar esquecer que toda normatividade colide com a antropologia clínica.

No Capítulo 6 – Lacan e a Jovem Homossexual: entre patologia e poesia?, Van Haute e GeysKens (2016) nos lembram que a primazia do Édipo é questionada pelo próprio Freud quando se depara com a Jovem Homossexual. Assim como se passou com Freud, essa Jovem vai colocar à prova o Édipo estruturalista de Jacques Lacan por causa de seu amor cortês à sua dama. É justamente diante disso que Lacan irá sugerir que “existe uma conexão entre a patologia e as formas específicas de expressão cultural” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.128), romance do amor cortês, assim como o romance histérico, trata do vazio na relação de objeto, melhor dizendo, na relação de amor. Diferente de Dora, que ama o pai por não poder lhe dar o que quer, a Jovem Homossexual ama a mulher que não pode dar-lhe o que deseja, depois da rejeição pelo pai. Até aqui, Lacan apenas constata que a histeria possibilita nosso confronto com o que seria um aspecto essencial da existência humana, mas ainda não reconhece que a estrutura histérica se expressa em patologias e em formas culturais, fundamento da patoanálise, da antropologia clínica.

Todavia, com a Jovem,  ele sugere haver uma equivalência entre “o amor platônico da Jovem Homossexual por sua amiga com o amor cortês” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.131). O modo de amor da Jovem é o mesmo expresso pelos menestréis dos séculos XII e XIII: “são modos de elaborar respostas para a mesma problemática universal” (p.132), da falta, do objeto que amamos por ser em falta, irrepresentável: eis o encontro de Jacques Lacan com a patoanálise. Desse ponto em diante do texto, Van Haute e GeysKens (2016) vão fundamentar nas obras seguintes ao final dos anos de 1950 de Lacan, a patoanálise, a possibilidade de uma psicanálise sem Édipo. O que faz essa Jovem Homossexual? Nos deixa claro, ao fazê-lo para o pai, que “o amor transcende todo objeto que pode ser trocado em uma relação amorosa” (p. 132-133), pois é um objeto fora do alcance. Do desejo pelo desejo insatisfeito que gerou a questão-sintoma “O que é uma mulher?”, o gozo feminino entrará no lugar do simbólico gozo fálico, do gozo como reposta à questão universal “O que quer uma mulher?”, reposta ali na existência fora da linguagem, quase como o lançar-se na linha do trem da Jovem, expondo a radicalidade da falta que nos causa.

Para fundamentar a patoanálise, se depreende daí, com Van Haute e GeysKens (2016, p.136) o efeito do caráter irremovível e universal da falta: “patologia e cultura podem ser colocadas em uma relação de continuidade: seres humanos vivem em uma permanente tensão entre esses dois polos”. Nesse ponto, os autores preparam abertamente um fundamento da antropologia clínica: “Tal como afirmamos anteriormente a partir da teoria freudiana, talvez, nesse caso, possamos deixar de pensar em diferentes tipos para passarmos a pensar em termos de diferentes graus. A mesma problemática está em jogo na patologia e na cultura, e ninguém escapa da patologia, do mesmo modo que ninguém escapa da cultura e da literatura. De acordo com esse modelo, então, a sublimação não necessariamente nos liberta da formação de sintomas. Aqui, há apenas espaço para diferenças em termos de graus: o ser humano está suspenso entre patologia e cultura”. Os autores, de uma só vez, colocam em xeque a metapsicologia psicanalítica, na medida em que o pathos é de todos nós,  e noções fundamentais como sublimação perdem sua função libertadora de nossos sintomas, estes ganham ares de caricaturas, exageros de pathos comum.

No Capítulo 7 – Além do Édipo? Van Haute e GeysKens (2016, p.141) vão se posicionar diante da questão-título. Depois de cartografar como o Complexo de Édipo impõe à tradição psicanalítica um “elemento normativo”, vemos que a insistência de Freud para “encaixar os problemas de Dora em uma matriz heterossexual” fez com que ela colocasse fim à análise. Ao fazer isso, ela fez com que o grande psicanalista confrontasse “a inadequação do seu saber e as suas deficiências como psicanalista”. Chegamos aos seminários de Jacques Lacan O avesso da psicanálise (1969-1970) e Mais, ainda (1972-1973), ou o que podemos ler como o acontecimento discursivo dentro da tradição psicanalítica para registro do funeral de Édipo e seu complexo normativo de determinação da sexualidade.

Dora faz os discursos girarem, como mostram os autores no seminário O avesso da psicanálise. Para Lacan, de agora em diante, o Complexo de Édipo é inútil para a clínica, nos informa os autores. Ao tratar dos discursos, Jacques Lacan constatará que esse Complexo não dá conta da relação entre a histérica e o mestre, pois esta ao esperar sempre uma resposta para todas as suas perguntas, outrossim, cria “essa figura do mestre e buscam [busca] seu conselho… até que ele falha” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.143). Dora e a Jovem Homossexual mostraram a Freud o equívoco e a inadequação de sua resposta edipiana ao exagero [do amor] de suas existências, porque sendo portadoras da verdade que o mestre acredita saber, é preciso ver que as configurações patológicas (da histeria) sugerem, conforme a nota de rodapé, onde Van Haute e GeysKens(2016) citam diretamente Lacan (1969-1970, p.101)  “que tudo deve ser requestionado no nível da própria análise, do quanto de saber é preciso para que esse saber possa ser questionado no lugar da verdade”. O Édipo, não permite esse requestionamento.

Jacques Lacan é radical em sua crítica ao Complexo de Édipo (lembremos que ele mesmo tentou sua versão simbólica): trata-se da personificação da figura do mestre e sua castração, mas como um sonho de Freud, de seu desejo infantil. Para Van Haute e GeysKens (2016) haveria uma leitura desfigurada e descontextualizada do mito de Sófocles por parte de Freud, pois isso é dá conta de seus desejos infantis, porque Freud não percebe que ao matar o pai, Édipo, de fato, perde todo o acesso à mãe, ele vai perdendo tudo e, ainda, em sua leitura, Freud apaga por completo o “desejo da mãe”, impondo a ideia do “desejo pela mãe” (basta ler o Mito para ver o desejo de Jocasta). Desse modo, matar o pai significa reconhecer quão grande é esse pai, que precisa ser morto.

O que temos é o rompimento com o falso reconhecimento sobre nossa “impossibilidade de um prazer ilimitado fora da lei”. Van Haute e GeysKens (2016) localizam na questão feita por Lacan, “O que quer uma mulher?” que ela bem poderia querer o pai morto, o prazer ilimitado, o gozo, o real como impossível, o gozo feminino, gozo outro, pois esta é uma questão que ninguém é capaz de responder. Lacan nos mostra, a partir disso, que desejo é uma impossibilidade para os sujeitos e, poderíamos constatar, Mulher é referente àquilo que antes era Dora e, depois, a Jovem Homossexual.

Na sequência desse sétimo capítulo, o trabalho dos autores é mostrar como, no funcionamento dos discursos, em específico dos discursos da histérica e do mestre, esse “pai morto produz o saber sobre a sexualidade desejado pela mulher histérica “ (Van Haute e GeysKens, 2016, p.155) e, ser desejado é ser impossível e isso marca a distinção entre o gozo feminino (gozo Outro) e o gozo fálico, dos tempos do simbólico, porque com o pai morto Dora pode ler e amar (de modo cortês) o que e quem quisesse. Mas, a histérica sabe que seus objetos estão fora de alcance.

É a partir dessa condição de um gozo que não se aloca sob a lei simbólica e nem sobre ideais que contornam todo sujeito histérico que Jacques Lacan, no seminário Mais, Ainda (1972-1973) irá opor o limitado gozo fálico sujeito às leis do simbólico ao gozo feminino que escapa desse simbólico, de toda normatividade e naturalização da vida subjetiva: “buscar em vão uma resposta se refere a quem ela é ou o que poderá se tornar para além da economia fálica [do pai morto, do mestre]” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.159). Dizer o que é ou quem é um sujeito é uma resposta em vão.

Isso permite pensar a patoanálise a partir da elaboração lacaniana, pois a “relação com esse outro gozo ‘feminino’ não apenas determina um modo de compreender a histeria, como também se expressa em formas culturais específicas (mais especificamente aquelas referentes ao misticismo e ao amor cortês)” (Van Haute e GeysKens,2016, p.160). Nem Dora e nem a Jovem se subjugam à égide de Édipo e do falo.

“Além do Édipo?” é uma questão produtiva, nos lança para um trabalho que não se resume em “com ou sem Édipo”, isso depende de como cada um localiza a psicanálise, em seu tempo.

No Capítulo 8 – Retorno a Freud? A patoanálise lacaniana da histeria, Van Haute e GeysKens (2016) inscrevem a possibilidade de uma psicanálise onde sujeito e cultura expressam o universal e que agora não são disposições inatas e nem mesmo estruturas elementares de linguagem, mas a relação de impossibilidade com esse desejo. Aqui, nosso trabalho como sujeito do desejo e nossa cultura se estabelecem como impossíveis de delimitações, de regulações, de unicidades e relações de simetria entre as diferenças. Se existe uma “psicanálise sem Édipo”, ela se fundamenta na leitura dos modos de escolha sexual de Dora, de todos nós, escolhas em torno dessa impossibilidade, mas que localiza o sujeito no lugar exato de sua (Real) ex-sistência: no limite fora da linguagem e o gozo feminino bem seria uma espécie de economia suportável ao sujeito de ser fora da linguagem, fora das disposições e normatividades edipianas ou fálicas.

Freud nos ensina sobre a sexualidade humana que nunca haverá uma ‘normalização’ no processo psicossexual, nossa sexualidade será sempre “desordenada”, complementam Van Haute e GeysKens (2016), nunca é um projeto biológico e, mesmo como um “projeto” de linguagem, ela escapa. Até agora, na tradição psicanalítica, a sexualidade foi apresentada na versão freudiana não biológica, mas edipiana, pela versão lacaniana do simbólico, do falo, do gozo fálico, determinada pela posição dos sujeitos nessa estrutura de linguagem que nos antecede, de onde se depreendeu um avanço ao se constatar não haver relação sexual, o que há é a incompletude. Disso, Jacques Lacan depreende a sexualidade em sua versão como sexuação, onde o que está em cena é dissimetria entre os sexos, o gozo fora da lei, o gozo feminino e feminino não é a mulher como realidade biológica é, desde sempre, a recusa e resistência histérica ao Édipo e ao falo. Isso será elaborado por Jacques Lacan nas denominadas “fórmulas da sexuação”, onde toda a sexualidade, a relação do sujeito com seu desejo, com seu objeto perdido, com o Outro, com o falo e o gozo fálico, se dará em torno dessa condição universal do “feminino”.

Para Van Haute e GeysKens (2016) são dessa formulação lacaniana sobre a sexuação, o que podemos ver como os fundamentos metapsicológicos para uma psicanálise sem Édipo, para a patoanálise, em tensão desde Freud, e que os autores irão propor como a antropologia clínica. A saber: i) as “formulas da sexuação” e o “Gozo Outro/feminino” (resistência ao Gozo do Outro/fálico) encerram a problemática do Complexo do Édipo; ii) a diferença sexual não é uma saída para a mulher que depende da resolução edipiana, mas essa “investigação da mulher e da identidade feminina” é estéril, pela lógica freudiana: “a mulher não pode ser plenamente compreendida nos termos do complexo de Édipo e da castração” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.163).

Sobre as “fórmulas da sexuação”, frente ao limite desta resenha, elas se “referem às diversas posições (masculina e feminina) que o sujeito linguístico assume com relação ao falo e que retomam a tese fundamental de Freud sobre a bissexualidade. De acordo com Lacan, elas se referem à problemática que cada sujeito confronta na medida em que é um ser de linguagem. O sexo biológico não está em pauta, mas as duas posições enunciativas possíveis ainda na linguagem “que o sujeito pode assumir em resposta à diferença sexual e à lei do falo” (Van Haute e GeysKens, 2016, p. 165), assim, ‘masculino e feminino’ não se referem a masculinidade e feminilidade em sentido biológico, pois o masculino (referência biológica) pode aparecer em qualquer uma das posições enunciativas, assim como o feminino (referência biológica): trata-se como cada sujeito enuncia-se sua sexualidade, todavia, para isso, precisa garantir essa escolha no risco da existência fora da linguagem, risco suposto “na tensão estrutural que caracteriza a subjetividade como tal” (Van Haute e GeysKens, 2016, p.165).

Na alteridade entre as posições “homem e mulher” no quadro de Lacan, sobre as fórmulas da sexuação, vemos que na posição do masculino, o gozo fálico se aloca entre um desejo que é causado por um objeto que está fora da cadeia de significantes (objeto a) e que “tem uma qualidade inumana”, pois gozamos apenas com a pequena parte excitante do corpo do outro, e o “significante sujeita a sexualidade a limites ‘humanos’” (Van Haute e GeysKens, p. 168,2016). Podemos ver isso simplificado no fato de que é a linguagem que determina que “pênis” é de homem e “vagina” é de mulher, para ser mulher precisa ter uma vagina, assim como para se ser homem é preciso ter um pênis. Vemos, porém, na posição do feminino, como esse significante falo não opera, e a falta (efeito do simbólico) não explica essa modalidade outra de gozo, o gozo feminino, que nas palavras de Santa Tereza D’Ávila, tão requisita por Jacques Lacan, é “um deleite que me fez nunca querer parar”  ( apud Van Haute e GeysKens, p.169-170, 2016), que os sujeitos experimentam mas não sabem nada sobre isso que experimentam, pois não cabe na linguagem, o gozo feminino não é articulável na linguagem: é aquilo que o sujeito pode  suportar (o limite) sem desaparecer, para além da ordem simbólica (e de qualquer aproximação com Édipo, pois nada se pode dele saber). Essa é a escolha do sujeito na partilha dos sexos, escolha real. Necessário esclarecer que esse gozo não é naturalizado e que o corpo em cena, o corpo real é aquele ao qual ninguém tem acesso, pois está fora da linguagem, menos ainda tem a ver com o orgânico, por isso o sujeito imagina o corpo que tem.

Essa é a posição do feminino, a mesma que tornará toda resposta à questão “O que quer uma mulher?” um ponto de recomeço, aquela que nos mostra como a identidade, a escolha sexual, a patologia, a cultura e seus exageros atravessam e determinam toda experiência humana e a antropologia sobre isso deve partir dessa condição de um sujeito que suporta ser fora da linguagem, sem desaparecer, que suportaria o não reconhecimento imaginário e simbólico. Isso implica, ainda, a resistência a posições estruturais pré-determinadas e normatizações e disposições inatas como dispositivos de definição de sujeitos, de se definir o que pode uma mulher querer. Seu amor cortês, nesses termos, não é mais em direção a um objeto inacessível, agora o gozo é impossível, pois fora da linguagem o sujeito apenas pode desejar existir.

Na Conclusão – O projeto de uma antropologia psicanalítica em Freud e Lacan, Van Haute e GeysKens (2016) buscam pensar o que significa a psicanálise e seus fundamentos pensando no pathos e na cultura como modos de experiências exageradas de quem somos.

Ainda como um projeto, portanto, os elementos levantados e discutidos ao longo da obra estão colocados a trabalho, na clínica e na cultura contemporânea, a antropologia psicanalítica apresenta vários aspectos, conforme desenvolveram Van Haute e GeysKens (2016, p.181 e seguintes). Consideraremos, na sequência, esses aspectos: a) a originalidade de Freud “sobre a sexualidade  está no fato de que as várias patologias sexuais são pensadas como meros exageros de tendências compartilhadas por todos os seres humanos”; b) Freud, no Caso Dora, nos mostra a importância das “narrativas traumáticas de seus pacientes”; c) a condição bissexual e o conflito com a sexualidade são heranças freudianas para além do Édipo; d) não apenas as patologias expressam nossos elementos constitutivos, nossas disposições, as formas culturais como a literatura também expressa esses mesmos elementos, como a histeria em romances (lembremos de Madame Bovary, de Flaubert); e) todavia, a literatura, nesses termos, não é uma alternativa sublimatória às psicopatologias, pois as duas, “literatura e patologia, têm origem em uma insuperável disposição compartilhada por todos os seres humanos. Lidamos com essa disposição de maneiras diferentes com a patologia e ao criarmos ou apreciarmos obras literárias”, e de arte, de modo geral, assim como outros elementos culturais; f) como vimos, ao longo de toda a obra, o Édipo é uma armadilha, se o tomarmos como determinação do jogo entre nossos desejos e nossas identificações, pois ele inscreve um elemento normativo e regulador a esse jogo; g) Freud continuou a lidar, durante toda sua obra com as tensões causadas pela bissexualidade e a resistência histérica; h) “A patoanálise desfaz a ideia de que a patologia seja, essencialmente, resultado de circunstâncias contingentes que podem interferir ou impossibilitar o desenvolvimento ‘normal’”; i) Lacan coaduna com o projeto de uma antropologia clínica, “pensa a histeria como um exagero de uma característica estrutural do desejo”, porém, mesmo reconhecendo que a “mulher histérica recusa o papel que lhe foi prescrito pelo sistema de parentesco”, esse mesmo sistema reintroduz um elemento normativo no jogo do desejo e das identificações; j) “O humano como um ser situado entre”, na tensão entre a patologia e a cultura, conforme proposição de Jacques Lacan ao tomar o amor cortês como o elemento da cultura que nos mostra a relação da falta com o desejo (e seu objeto); k) O gozo feminino, que não é privilégio de qualquer sexo, mas afeto todos os sexos, “indica claramente que a sexualidade feminina (na verdade, a sexualidade humana como tal) não pode ser compreendida nos termos de uma ordem exclusivamente fálica (simbólica)”, pois “todo ser falante confronta a problemática de um gozo para além do simbólico. A existência humana se realiza, portanto, como uma relação tensa e irresolvível entre ‘o lado do homem’, no qual a referência à castração é central, e ‘o lado da mulher’, que se articula nos termos de um gozo feminino (não fálico); l) para “Além da histeria”, coloca em pauta se a patologização da vida, pela ciência, não viria justamente opor-se ao pressupostos da patoanálise,  pois o homem não seria um animal a ser curado, na medida em que “de acordo com o princípio geral do cristal, toda psicopatologia é um exagero caricatural de uma problemática comum a todos os seres humanos”.

 

Considerações Finais

 

Um aspecto nos parece relevante, para fechar essa resenha, o de que a qualquer tensão entre homem e cultura corre-se para sua resolução normativa, científica e opressora onde – sem a ética como política e relação do sujeito com suas ações – os saberes acabam por corresponder a essa demanda de normalidade e patologização da vida, de enquadramento em categorias clínicas e sociais, em definições e predicações de toda ordem, sempre para dizer a Dora do que se  trata seu desejo, esquecendo que se trata, de fato, de um desejo pelo desejo insatisfeito, de um gozo ali no limite da existência. Considerar uma antropologia psicanalítica, na relação intrínseca entre pathos e cultura, que a psicopatologia são modos de expressão caricaturais, exagerados de  problemáticas comuns a todos nós é, na atualidade, colocar em pauta toda uma clínica que insiste na categorização do sofrimento, no apagamento da narrativa de sujeitos (para além de não mais escutá-los), nos modos de cultura que servem-se desses mesmos elementos de apagamento e de uma espécie de (des)narrativa da vida: essa relação pathos e cultura, na atualidade, apaga a tensão que produziu toda a obra psicanalítica, cala sujeitos, impede desejos e proíbe identificações de toda ordem, não concebem o quantum de não determinações que hoje tomam lugar nas velhas e inviáveis estruturas elementares, pois o elementar está fora dessas estruturas.

São esses, os aspectos que nos colocaram a trabalho nas questões em torno das quais iremos conversar no Espaço Aberto Hæresis de Psicanálise e Filosofia: de Dami Silva, psicólogo, estudante de filosofia e doutorando em Estudos da Linguagem (ILEEL/UFU): Se podemos dizer que os sintomas histéricos falam para aqueles que querem escutar, qual questão a histeria colocaria para uma filosofia que é tão avessa à escuta, e qual questão a filosofia faria para a psicanálise tão afeita a uma escuta sensível? E de Cirlana Rodrigues, psicanalista membro-associado Hæresis: As caricaturas da dor: problemas atuais que a histeria coloca sobre as modalidades do pathos como excesso.

Dora colocando a psicanálise a trabalho, fazendo essa roda girar e gozando.

 

Referência Bibliográfica: Van Haute, P. e Geyskens, T. Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, 205p.(Tradução de Mariana Pimentel