Psicologia em Foco, CRP 04, de 13/07/2016

 

(* Trata-se de uma conversa sobre a temática, sem outros propósitos. Os termos Infância/criança por vezes se sobrepõe na mesma função semântica**Autores mencionados no corpo do texto.)

 

Lacan (1953) afirmou que aqueles praticantes da psicanálise que não considerem a subjetividade de sua época deveriam desistir de praticar a psicanálise, por isso, trabalhar na clínica com crianças, seus impasses constitutivos e sofrimento psíquico é localizar a criança na contemporaneidade, é atualizar os discursos sobre a criança já que nestes convergem os sintomas da criança e o que é uma criança.

O crítico Neil Postman, no livro O Desaparecimento da infância (1982), nos mostra os deslocamentos que a    ‘ideia’ de infância vem passando considerando as relações entre essa ideia, a tecnologia de comunicação, a consciência, os valores culturais e os sentimentos. O autor retoma a linha dos estudos sobre os costumes, na linha traçada por Norbert Elias, Ariès Philippe e outros, expondo sua tese do desaparecimento da infância. No prefácio à edição mais recente, o autor reafirma a mesma tese e se declara não ser capaz de apontar saídas para interromper a tendência por ele identificada anos antes.

O termo “desaparecimento”, no título da obra de Postman, expressa que as crianças estão se tornando seres adultos precoces ou pseudo-adultos.  A argumentação recupera as semelhanças e distinções entre crianças e adultos no que tange ao vestuário, a linguagem, as atitudes e os desejos, em diferentes contextos históricos.

A tempos vê-se, em diferentes áreas, autores colocando em questão a infância como o lugar discursivo, histórico, social, cultural e subjetivo de crianças e adolescentes. Se olharmos as pinturas de todas as épocas, é possível ver, desde antes a idade média, a ausência de crianças e adolescentes nas pinturas e como, pela via da religiosidade, ela começa a aparecer lentamente nas pinturas em raras situações de cuidado, de educação entre outros. Mas algumas pinturas se destacam: aquelas em que as crianças sempre apareciam de mãos das com figuras de morte, pois, entre outras situações, ficava-se sempre a dúvida se aquele bebê, aquela criança iria ou não sobreviver, devido à mortalidade infantil. Essa morte da criança, para alguns, se apresenta em retorno e, podemos dizer, de modo pessimista, não apenas de modo figurativo. Questões se apresentam como ‘O que se espera de uma criança?’, feita por Claúdia Mascarenhas ou,  equivocadas confusões se estabelecem como a feita entre a queda de ideais parentais e de referências de lei (simbólica) com um ‘suposto’ fim da metáfora paterna.

São tempos em que é preciso perguntar a que imaginário social essa noção de infância estaria submetida (De a-criança ao real infantil: reflexões psicanalíticas acerca da infância/Eric Ferdinando Kanai Passone/2016/Estilos da Clínica). Esse imaginário está submetido à evidência científica, evidência que é apenas consistência, segundo minha hipótese. É a cruel evidência do Você é isto, tamponando o Você poderia ser isto ou aquilo ou aquilo outro, da alteridade.

Ouvimos que hoje, no agora da sincronia, do tempo mesmo da infância, são tempos de retrocessos e de conservadorismo. Estes  termos  não têm a ver com algo do tipo “naquele tempo era melhor”. O que estaria na cena contemporânea como seu obscuro (Giorgio Agamben) é justamente uma espécie de retorno a aspectos culturais e históricos em que os processos civilizatórios imaginariamente retomam seus equívocos históricos higienistas e sócioeducativos, enganando-se novamente sobre a inabalável eficácia do saber biológico.

Em francês, retrocesso traz o sentido de recaída e figurativamente “reculée”, de algo remoto. Também, é recochete [a volta que um corpo faz quando é atingindo]. Portanto, o que é do sujeito volta sobre ele mesmo, porém sem o corte da linguagem. Estaria a infância, esse objeto cultural e social ricocheteando, retornando a algo remoto, como aquilo da presença de uma morte nas pinturas? Ou mesmo a antes, a esse ‘reculée’, onde não haveria nem mesmo essa noção de infância, frente ao número de mortes cotidianas de todas as formas? Portanto, valeria perguntar se realmente a mortalidade infantil estaria sob controle, se não estaria em pleno desenrolar uma mortalidade infantil do tipo social, histórica e cultural? Por isso, em tempos de retrocesso, o resto de infância.

Estou considerando a construção histórica e social de infância, em que crianças e adolescentes passam  a ser de interesse dos processos de construção de saber, articulada com o ‘fato’ constituinte de que ‘infância’ é tempo lógico do psiquismo/da constituição do sujeito, e isso diz, entre outras coisas, que há um risco desses processos se encontrarem com o cerne de um sujeito do desejo, que é sua condição de subversão: subverter, fazer outra versão ao que está aí, fazer outra versão ao seu direito de gozar, de ser gozador. Qual versão temos em um tempo determinado pelas leis de consumo, estas em substituição às leis de produção? Aquilo que produzimos como ‘sujeitos’ tinha um excesso, um resto que não se consumia, pois deveríamos abrir mão, cedê-lo ao outro como pagamento a nossa condição de desejar: seria um preço qualquer, um valor não contável que pagamos por isso [uma alegoria ao objeto a], o resto em presença vazia e que encerraria nosso engodo de totalidade. Essa é a condição nuclear da infância, de ir escrevendo em seu percurso isso que é resto, inscrevendo a incompletude. Porém, como se dá essa inscrição em tempos de uma completude gozante, como a infância vem inscrevendo esse resto pelas vias de uma espécie de obrigação ao gozo em que devemos consumir o que produzimos em excesso, na nova ordem e, assim, não ceder mais ao desejo, à falta?

Não concordo com o fim da infância, mas é preciso fazer questões em torno disso que ainda é resto dos restos da infância e dos modos contemporâneos e obscuros das tentativas de fazer essa ‘morte’, tentativas de calar o choro e o grito original de uma criança, praticamente aquilo que dá início à vida. Conto duas cenas de filmes sobre isso.

Primeira cena do filme Filhos da esperança (EUA/2006). Estamos na Terra, 2027. As mulheres não conseguem engravidar por algum motivo misterioso. O ser humano mais novo morreu aos 18 anos e estamos, então, em um risco concreto de extinção da humanidade. Theodore é uma jovem que misteriosamente aparece grávida [um milagre que não tem explicação religiosa, pois não há mais um Deus a se ter fé], e o filme gira em torno de protegê-la e proteger o bebê que consegue nascer e ir sobrevivendo em meio à miséria e à guerra, em um tempo destituído de todo traço de civilização. Destaco a cena do choro misturado ao grito, nesse mundo sem criança. Quando o bebê nasce é preciso escondê-lo. Durante um tiroteio, o bebê começa a chorar de modo intenso, quase como gritos. Aos poucos, vemos como esse choro se sobrepõe aos tiros e todos, abismados, param diante daquele som, pois havia sido a 18 anosa última vez que um choro de criança havia sido escutado. Incrédulos, as personagens esfarrapadas se aglomeram em torno desse chamado à vida.

Na segunda cena, do filme Perfume, história de um assassino (2006), a mãe do pequeno Jean-Baptiste o abandona logo após o parto, no meio do lixo, no meio do esgoto do mercado de peixes, na fétida Paris de 1738, o abandona para a morte. O bebê chora, grita forte como apelo de amor a um resto de cheiro daquele objeto que ficou como promessa de ser objeto de amor. Choro que naquela história anuncia a morte, e as pessoas se aglomeram em torno desse chamado à morte, pois é a isso que Jean Baptiste vai se dedicar em vida.

Dessas duas cenas destaco apenas como pode ser fácil a uma criança morrer e desaparecer, todavia é da infância e dos corpos de meninos e meninas que essa noção vai tomando forma e se tornando a presença que exala a vida no meio das obscuridades: pode ser difícil de uma criança morrer.

A infância é tempo, lugar sincrônico do aqui e agora, de mudanças, transformações, perdas e ganhos, da passagem de um sujeito que não fala para aquele que vai sustentar seu dizer, é o caminho que percorremos para entrar na cultura, dela ser efeito e sobre ela ter efeitos. É o processo civilizatório de Freud, do mal-estar como resposta à nossa hostilidade pulsional. A infância é o caminho de (des)encontro com a sexuação, encontro com a partilha dos sexos pelas vias dessa sexualidade que é pura cultura.

Conservadorismo tem como sinônimo conservantismo que soa e ressoa de modo duro em tempos em que não se quer deixar restos/que não se quer sujeitos, em que a fala toma função imaginária e perde seu estatuto simbólico, perde sua opacidade.

Quais tentativas de impedir essa ascensão à linguagem, no contemporâneo da infância? Pode-se enumerar várias: tornar patológica a lei básica de constituição do psiquismo, que é a repetição, a persistência em sair de sua passividade para a atividade, pelas vias da criatividade, do brincar e tornamos isso agitação, hiperatividade em um mundo de excesso de excitações; não erogeinizamos seu corpo, pela significação, mas violentamos esse corpo, passamos ao ato; tornamos crianças e adolescentes consumidores e autoconsumidores, mesmo sem oferecer-lhes condições subjetivas e sociohistóricas para isso, sem lhes dar a possibilidade de escolher entre o ter e o renunciar a algo; não falamos com elas, o que barra a transmissão simbólica, a transmissão de ideais parentais [apostas que fazemos nesses pequenos sujeitos]; matamos o pai [não a metáfora paterna] como aquele que nomeia e não possibilitamos aos pequenos ir sem esse pai; destituímos os espaços primordiais de supor saber sobre esse sujeito nas versões falidas da família e da escola em que afetos são patologizados; vemos isso na questão sobre a agressividade em nome da segurança, de riscos gerenciáveis; os movimentos são cerceados e o corpo da criança deixa de ser convocado; o sofrimento psíquico é tamponado [abafado!] por todas as formas de comportamentos observáveis tratáveis e intratáveis: não há pathos, não há mais paixão na infância; as crianças escolhem e na adolescência não há mais escolhas a serem feitas, ideais a serem transgredidos.

Como a noção de infância, revolucionária em seu fundamento, não irá sucumbir a esses tempos de tradicionalismo quando o direito à diferença é negado, de criatividade eletrônica que sufoca a criação, de invenções ao contrário [brinquedos prontos], de um higienismo sob a tutela do biopoder, de insistência em velhas fórmulas familiares, em uma educação que se nega à transmissão histórica e nega veementemente a sexualidade infantil; de um sistema que começa a assumir não querer incluir o outro, de um cotidiano imediato e forjado em imagens enganadoras, em facadinhas que viram facadinhas de nada como na pintura de Frida Khalo, de hostilidades ao singular, de silenciamento do que produz riscos de ruídos e de uma afetividade sentimentalista que barra a circulação de afetos?

Tempos em que a ciência da evidência é gestora da vida e dos riscos de viver. Podemos perguntar, por exemplo, considerando alguns trabalhos feitos, que relação tem a criança e o adolescente com a cidade em que vive, em que deveria circular? Qual o tempo do tempo da infância nesses tempos de urgências? O que é urgente? É possível que infância seja uma evidência? O projeto de felicidade não é garantido pela norma que diz ‘você deve ser feliz’, e ser feliz é ser eficiente, ser igual, hoje em dia.

Diante disso, começo por citar um verso de Hilda Hilst: “Tempo de cegueira, quando os homens não se veem”, tempo, aliás, confirmado por José Saramago no Ensaio sobre a cegueira. Tempo de surdez e tempo de mudez, acrescentaria. O filósofo Giorgio Agamben diz que repetir é a lei da infância, nos termos freudianos: repetir, persistir, reconhecer-se e estranhar-se como semelhante, o que não é negar a semelhança, se separar, diferenciar-se, ser alteridade, ir-se do outro, mas levar as marcas e os traços dessa experiência simbólica [desamparo], perguntar o que quer, criar, recusar, verter sua nomeação, atuar e dizer, acolher no corpo a língua que lhe causa, alocar a falta sexuada no corpo.

Jacques Lacan e Manuel de Barros ajudam a ver e compreender esse resto. Dois que nos retornam pela poesia. Lacan, em Duas notas sobre a criança, entregues a Sra. Jenny Aubry em outubro de 1968, diz que o sintoma da criança é o ‘representante da verdade’ [não é A verdade]. Na criança esse sintoma se encontra na situação de responder por aquilo que há de sintomas/de verdade na estrutura familiar [correlato das estruturas simbólicas]: criança é o correlato de uma fantasia do outro, sendo aí a presença do terceiro para assegurar essa mediação e o que esse Outro quer que eu deseje e o que eu quero desejar. Duas faltas. É dessa não mediação pelo desejo, pela linguagem, que temos a criança objeto, a criança resto do desejo do Outro. Ser esse resto da fantasia do Outro com seu desejo nomeado aprisiona a criança. Esse sintoma é sexual e faz laço. A criança faz sintoma, vai dizer o que se passa, pois  é “um corpo, mas um corpo que não consegue fazer a aprendizagem da satisfação, que não consegue regrar seu prazer segundo as vias previstas pelo Outro [sempre é muito pouco, ou demais ou não é assim]; em suma, é um corpo ineducável que faz fracassar todas as ideias concebidas sobre uma progressão harmoniosa” (Yolanda Mourão Meira, As estruturas clínicas e a criança, p.19).  Criança parece um ser destinado a gozar. De fato, é. Todavia, é justamente a direção dada a essa polimorfa perversão, como disse Freud sobre a sexualidade infantil, que seria a condição humanizante.

Na Alocução sobre as psicoses da criança (1967), Lacan, dizendo não haver gente grande, cria a expressão ‘criança generalizada’ e, sendo todos crianças, todos destinados a gozar, quem responderia pelos modos de gozar de cada um de nós? Quem responderia pela incompletude? Essa criança generalizada [que mata um pouco a lógica estrutural da infância como distinta da do adulto, e  Lacan parece chamar a atenção para isso] é a criança objeto, efeito do encontro entre o capital/mercado e a ciência, do discurso universalizante da ciência. Assim, é essa dupla que responde pelos nossos modos de gozar dizendo, Goza! Cada um irá responder a essa condição de ser-para-o-sexo via a fantasia, vias as tentativas de saber-fazer com o que goza. Ou não.

Nessas condições, que lugar tem hoje os devaneios criativos de uma criança lembrados por Freud, para verter essa condição de gozo, para ser resto e fazer o resto? Quem vai dizer isso é Manuel de Barros, pelas vias das ‘disfunções líricas’ no brincar da criança, no laço que faz com o Outro, na circulação dos afetos nas cenas sociais e culturais, do corpo convocado a comportar algum sexo, não todo sexo, a incompletude, no que diz e no que lhe é interdito.

De início, Manuel de Barros diz que seria bom ter “um parafuso a menos”, como um poeta, aquele que faz e se atreve a mexer com a rigidez das formas da língua, da língua de brincar. Mas, ele continua, não sendo possível ter um parafuso a menos: “o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos. ” A sugestão do poeta é trocar o parafuso, valor poético do fazer, pois é isso que vai provocar uma disfunção na lírica poética. Trocar:  trocamos com o diferente e o valor é essa diferença, ação infantil transgressora nesse tempo de sintomas universalizantes e de generalizações.

Há um poema de Manuel de Barros chamado “A disfunção” e é dele que podemos ver os restos da infância, seus sintomas que dizem da verdade. Lembro que Freud, no texto sobre escritores e devaneios, diz que o processo criativo de um poeta é o mesmo de uma criança ao brincar e todos se dão em torno da insistência de algo inacessível. Esse poema está lá, perto do “Tratado geral das grandezas do Íntimo” (2001), de poesias que são guardadas nas palavras: é tudo que o poeta diz saber, pois gosta de não saber quase tudo. Nós, ainda mais,  e a infância também é guardada nas palavras, sujeito é guardado na linguagem que o carrega. O poeta assume que mente. Uma criança não mente mais? Deveria.

Manuel de Barros escreve poemas desconfiados. Com ele, aprendemos que é preciso desconfiar da evidência, do harmonioso, daquele que gosta de saber o tudo: comecemos daí. Crianças questionadoras [de seu desejo] fazem questões, desconfiam de nossas promessas. Em um tempo de funções de toda ordem transmitidas por neurotransmissores, o poeta nos conta d’A disfunção, daquilo que funciona diferente, um mal-estar impossível de funcionar.

 O poema A disfunção, de Manuel de Barros: “Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso a menos/Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos./ A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica./Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica. 1 – A aceitação da inércia para dar movimentos às palavras/2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais/ 3 – Percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos/ 4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras /5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes/ 6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra/ 7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros. Essas disfunções líricas acabam por nos dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.”

Dessa série sintomática que nos enlaçam, escrita pelo poeta, temos os modos de ‘trocar’ os parafusos, fazer na diferença, fazer sintoma cujo valor está exatamente nesse fazer – não no produto. Esse fazer, para fazer valor, gasta tempo, é preciso que nele se demore, que se insista e persista. Essa demora é a aceitação da inércia, que se pare: em tempos velozes [e furiosos], esse sintoma 1 é o de paralisar, é o modo de ‘dar movimento às palavras’, em que uma criança deveria parar-se em seus devaneios criativos, repetir e repetir. Nosso sintoma 2 é o de ‘vocação para explorar os mistérios irracionais’, resposta contundente à poderosa evidência da razão tecnológica e científica: quem melhor explora mistérios irracionais que uma criança? Sintoma 3: ver as seriações anômolas entre as palavras é ofender a ordem própria da língua, é brincar com a língua, ver o que está para além da norma forjada e estabelecida: ousado não seguir as regras, ousado, por exemplo, gozar menos, ou voltar a gozar naquilo que mais valia. 5: ‘fazer casamentos incestuosos’, jogar abaixo padrões vigentes. Sintoma atualíssimo. Como se transmite a diferença sexual a uma criança, diferença que é o resto do impuro, do sexo, para além das normas vigentes? Nosso sintoma 6 é o de transformar o que se mostra impossível, tornar a pedra um canto é um trabalho criativo de uma criança em seu brincar, todo seu faz-de-conta gira em torno de tornar a pedra um canto, tornar qualquer coisa em qualquer coisa. E o sintoma 7, que encerra a série, é essa mania de ‘comparecer aos próprios desencontros’: é o ir e vir, em ausência e em presença, um estranhamento consigo mesmo e um perder-se de si e do Outro, coisa que criança deve saber-fazer.

São sintomas, tentativas de saber fazer com esses obscuros conservadores, disciplinadores, opressores, inspetores, vigilantes, asfixiadores de nossos tempos, conhecedores paranoicos do todo. Seria bom, na língua do poeta, trocar os sintomas criteriosos de um DSM pelos sintomas da disfunção, da troca de parafusos. É essa infância, com um parafuso em constante troca que alocaremos em nosso discurso. São esses os sintomas daquela criança sintoma, cuja saída é trocar os parafusos, é ser desarmoniosa como condição ética da infância.

Para terminar, ainda com o poeta, no “Retrato do artista quando coisa”: “A maior riqueza/ do homem/ é sua incompletude/Nesse ponto sou abastado. ” O que resta de infância, em nossos tempos de retrocessos, é ser abastada de incompletude, rica é ser o que resta, ser ‘completa de vazios’, nos termos de Manuel de Barros, que nos apontou saídas para interromper a tendência ao desaparecimento da infância.

 

Cirlana Rodrigues de Souza

Psicóloga e psicanalista, doutora em Estudos Linguísticos, na linha de pesquisa Linguagem e constituição do sujeito. Trabalha na Rede de Atenção Psicossocial do Município de Uberlândia e em consultório particular.

E-mail: cirlanarodrigues@gmail.com