A III Reunião Aberta – Hæresis Associação de Psicanálise foi realizada em 06/07/2019. Considerando o entrelaçamento entre a experiência clínica como nuclear da psicanálise e o discurso psicanalítico como pertencente ao campo social, histórico, cultural e de saberes da sociedade contemporânea, abordamos as formas de subjetivação na atualidade brasileira.¹ Nosso tema partiu da proposição do pesquisador e psicanalista Fábio L. F. N. Franco, membro do FCL (SP), Doutor em Filosofia (USP) e integrante do LATESFIP (USP): “O Governo do excedente: Necropolítica e formas de subjetivação“. 

Buscando ampliar o debate, conversamos com Fábio Franco sobre seu trabalho e o tema de nossa reunião.


Thiago Martins de Melo, Necrobrasiliana (2019)

Hæresis: Durante a leitura de sua tese “Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil” ² e, retornando ao texto freudiano Luto e Melancolia (1917), é possível considerar que a melancolia como conceito estabelecido por Freud é pertencente aos tempos de gestão da vida [biopolítica] e, por isso, faz-se necessário sua atualização para nossos tempos de gestão da morte [necropolítica]? O que pode ser mostrado no enunciado: “Não bastasse a minha melancolia, agora a melancolia do mundo.”

Fábio: Não penso ser possível dizer que um conceito é necropolítico ou político. Temos exemplos de conceitos forjados para justificar formas de controle político da população que foram reconfigurados como categorias orientadoras da crítica social. Tal é o caso do próprio conceito de biopolítica, que aparece para legitimar as formas de purificação e saneamento do corpo social, mas se converte, com Foucault, num instrumento essencial para se conduzir a perspectivação crítica das tecnologias de poder a partir do século XVIII. Sendo assim, mais do que determinar se a melancolia é um conceito bio ou necropolítico, o que, insisto, não me parece nem importante, nem possível, é acompanhar os destinos dessa categoria clínica da Viena de Freud – que, é bom lembrar, não forja o conceito, mas o inscreve no campo da psicanálise – para a América Latina, para a Palestina ou para a África. Dessa forma, é possível identificar as formas como a melancolia se inscreveu em dispositivos de necrogovernamentais do sofrimento social, tornando-se, como sustentamos na tese, um afeto necessário para a organização dos vínculos em determinadas sociedades.

Hæresis: Ainda, considerando suas elaborações a partir do texto freudiano mencionado, e discutindo “as ressonâncias políticas da exclusão social do luto, e de sua reclusão como fenômeno psíquico individual” (Franco, 2018, p.175), qual sua posição frente às contundentes críticas epistemológicas feitas atualmente, dentro do próprio campo psicanalítico, sobre uma ‘espécie’ de impossibilidade de ‘seguir com Freud’, impossibilidade essa marcada por uma veemente crítica que coloca em destaque um Freud indissociável da leitura biológica em conceitos como o de ‘pulsão’?

Fábio: Essa frase citada da minha tese se inscreve no momento que apresento a leitura de Jean Allouche sobre Luto e Melancolia, de 1917. De fato, para Allouche, esse texto de Freud pode ser compreendido como um esforço de resgatar o estatuto normal do luto enquanto fenômeno psíquico individual. No mesmo capítulo da tese, recupero a interpretação que a filósofa estadudinense Judith Butler constrói sobre o mesmo artigo freudiano. Ela, contudo, interessa-se por colocar em relevo exatamente o contrário do que preocupava Allouche. Para Butler, Luto e melancolia é um texto clínico com evidentes ressonâncias políticas, que teriam passado despercebidas talvez para o seu próprio autor. De certo modo, essa significativa diferença nas interpretações de Luto e Melancolia empreendidas por dois qualificados estudiosos de Freud revela que a relação entre um leitor e uma determinada obra não pode tomar a forma de um mero decisionismo consumista do tipo: “quero isso, não quero aquilo”.

O filósofo político contemporâneo, Claude Lefort, no seu magnífico estudo sobre Maquiavel, intitulado O trabalho da obra, publicado originalmente em 1972, insiste que uma obra de pensamento não existe fora das relações que tecem entre si texto, escritor e intérpretes. Não se trata, porém, de relações pacíficas, harmônicas. Ao contrário, a obra de pensamento se caracteriza pela negação de um suposto saber, que assumia o lugar de verdade absoluta, abrindo espaço para a emergência do novo, de perguntas até então obstruídas, de lacunas que darão a pensar e a dizer na posteridade, na história. Mas, observava Lefort a respeito dos intérpretes do pensador florentino, há sempre o risco iminente de que os leitores tentem colocar a obra no antigo lugar que fora ocupado pela verdade absoluta destronada, tamponando a indeterminação produtiva da obra. Acontece, porém, que ao tentar determinar a indeterminação que pulsa na obra, o intérprete, paradoxalmente, faz aparecer nelas novas zonas obscuras, irrepresentáveis. Assim, por mais que se queira reduzir a obra ao silêncio de uma verdade idêntica a si mesma, a indeterminação irrompe, projetando-a novamente na história.

Fiz essa longa digressão pois creio que as considerações de Lefort lançam importantes considerações sobre a pergunta que vocês me colocam. Nós, psicanalistas, conhecemos bem esse preconceito realista, denunciado por Lefort, que anima muitos dos nossos colegas, leitores de Freud e Lacan. Eles pressupõem que sob a obra, há a verdade da obra; que sob as indeterminações, lacunas, rasuras, contradições dos textos, há Um sentido inscrito no seu âmago, que está à espera dos melhores leitores para ser finalmente posto à luz. “Ao menos, deve existir um não lacunar”, fantasiam, apesar das análises concluídas. Contudo, os textos de Freud, Lacan e outros resistem a todos esses esforços, continuando a nos fazer pensar e dizer.

À luz dessas considerações, parece-me que é insustentável dizer que “não é possível seguir com Freud”, uma vez que Freud, enquanto nome da obra, não é capaz de unificar a indeterminação que insiste nos seus textos, forçando a abertura de novas possibilidades interpretativas, como as que eu apresento na tese.

Quanto a isso, um excelente exemplo é justamente o conceito de pulsão. A partir de Lacan, pode-se interpretá-lo de maneira radicalmente oposta a toda tentativa de identificá-lo com uma espécie de resíduo biologizante no interior da metapsicologia freudiana que apontaria para a tendência a um estado bruto inorgânico. A pulsão de morte, segundo alguns autores na esteira de Lacan, é uma violência contra o Eu entendido como unidade sintética da personalidade e, portanto, modelo da organização psíquica dita normal. ³ Estaria contida nessa pulsão o que permitiria indeterminar as formas fixas, identitárias e egológicas por meio das quais os sujeitos se socializariam.

Hæresis: Sobre isso, sua visada é da psicanálise, assim como a antropologia, dentro do campo das ciências sociais. Você poderia discorrer, brevemente, sobre que impasses teria para a psicanálise e o quão produtivo seria esse tipo de articulação?

Fábio: Não é incomum ouvirmos colegas psicanalistas sustentando a irredutibilidade radical da psicanálise a qualquer outro campo de conhecimento, como se houvesse uma barreira de intradutibilidade epistemológica, ética e política a separá-los. Todavia, parece-me que essa posição não condiz com o próprio processo de formação da teoria e da clínica psicanalítica, nas quais as trocas com outras áreas do saber são essenciais, seja porque fornecem hipóteses teóricas e instrumentos conceituais incorporados pela psicanálise, seja pelo fato de colocarem problemas capazes de indeterminarem o que parecia bem assentado como evidente na teoria e na prática psicanalítica. Os exemplos são incontáveis: Totem e tabu e a antropologia; Psicologia das massas e a psicologia social; O Seminário, livro 16, e a lógica, a matemática; o retorno lacaniano a Freud possibilitado pela virada estruturalista na antropologia, com Lévi-Strauss, na linguística, com Saussure, Jakobson e outros, na crítica literária, com Barthes; além de muitos outros casos, cujos rastros, nem sempre explicitados pela pena dos teóricos da psicanálise, podem ser localizados de Freud ao chamados pós-lacanianos. Afirmar que a psicanálise está numa ilha teoria e prática, a meu ver, seria o mesmo que pretender encerrá-la numa espécie de condomínio fechado, com todo o mal-estar, sofrimento e sintomas decorrentes disso, como vem sendo explicitado pelo trabalho de Christian Dunker.  

Hæresis: Acerca da clínica psicanalítica, quais são os impactos na direção de tratamento e na escuta dessas formas de subjetivação efeitos da necropolítica, na medida em que a individualização da prática de cuidado individual por vezes silencia o coletivo, como sustentam muitas críticas feitas à psicanálise (a partir de um entendimento tradicional e elitizado da disciplina)?

Fábio: Por um lado, não acredito ser possível responder a essa questão sobre a clínica desde uma perspectiva teórica, que, normalmente, tende a ser generalizante. No limite, é a clínica, entendida como diferentes experiências clínicas singulares, que pode fornecer fragmentos de articulações a respeito de se e como os efeitos de subjetivação da necropolítica organizam processos de identificação, aparecem na transferência etc.Por outro lado, a pergunta que vocês me colocam aponta para um problema mais complexo, a respeito do qual apenas posso esboçar alguns caminhos para atravessá-lo: trata-se da questão sobre as relações entre a prática clínica psicanalítica e as elaborações teóricas, embasadas psicanaliticamente ou não, que se dedicam a analisar criticamente o campo social a partir dos circuitos de afetos que constituem sua verdadeira base normativa, como tem insistido Vladimir Safatle. ⁴   Há anos, o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, da Universidade de São Paulo, o LATESFIP/USP, vem desenvolvendo pesquisas mobilizadas por esse problema. ⁵ Na minha tese, é a essas pesquisas a que me refiro quando, no último capítulo, procuro sustentar, apoiado sobretudo em Butler, Freud e Lacan, que a melancolia é uma das patologias do social da necrogovernamentalidade. ⁶⁷⁸

O conceito patologia do social tem uma longa história de utilização em diferentes ambientes teóricos. Por isso, vale dizer, muito resumidamente, que, no LATESFIP, temos construído o entendimento de que uma patologia do social consiste numa forma de funcionamento social a partir da gestão do sofrimento psíquico. Como já havia mostrado Canguilhem, uma patologia, particularmente as patologias psíquicas, não é uma realidade natural identificada a partir das suas manifestações sintomáticas. Uma patologia é, antes, um conflito normativo entre o organismo e o seu meio, entre uma forma de vida e as normas sociais, com os valores que lhe subjazem. Por isso, toda patologia é vivida primeiramente como mal-estar, no sentido de algo que exprime uma certa condição existencial de não-lugar, vinculada à experiência de estar ou absolutamente preso ou demasiadamente fora, a ponto de não saber se localizar. No âmbito social, este mal-estar procura se nomear precariamente por meio das narrativas que lhe inserem na história e nas relações com o outro. Contudo, como bem sabemos a partir da nossa escuta clínica, as narrativas de sofrimento são reconhecidas socialmente de formas diferentes. Enquanto algumas são consideradas normais ou saudáveis, isto é, conforme as expectativas normativas que, num dado contexto, regem o mundo do desejo, do trabalho e da linguagem, outras são diagnosticadas como patológicas, ameaçadoras tanto para quem as sofre quanto para os que o circundam, justificando, assim, intervenções terapêuticas as mais variadas. ⁶ Vê-se, portanto, que determinar quais modos de sofrer são saudáveis e quais não são, quais dinâmicas afetivas podem ser comunicadas segundo uma certa gramática de sofrimento e quais precisam ser tratadas, com remédios ou confinamento, é uma decisão profundamente política e moral, ao mesmo tempo que clínica. No limite, isso quer dizer que todo diagnóstico clínico é indissociável dos seus efeitos políticos e sociais, uma vez que eles estabelecem a partilha entre como se deve sofrer e como não se deve sofrer, quais formas de experiência são saudáveis e quais são patológicas. Governar o social gerindo o sofrimento psíquico significa, então, por um lado, determinar os quadros patológicos e a gramática do sofrimento que orientará a diagnóstica, entendida em sentido amplo, ⁷ e, por outro lado, administrar a incidência maior ou menor de certas formas de sofrer a partir da necessidade de se produzir formas de vínculo social. É, nesse sentido, que devemos entender, por exemplo, as afirmações de Adorno e Horkheimer sobre o interesse da propaganda nazista estimular a paranoia como uma forma de sofrimento psíquico, expressa na narrativa da ameaça do objeto intrusivo e da dissolução da unidade do Eu, necessária para a reprodução do fascismo e das suas dinâmicas de intervenção social. O mesmo pode se aplicar ao que eu escrevo sobre a função de se gerir a melancolização social no âmbito da necrogovernamentalidade contemporânea.

Parece-me, então, que considerações dessa natureza sobre a patologia do social têm efeitos maiores sobre a clínica, uma vez que põe a baixo tanto pretensões epistemológicas realistas, quanto exortações pífias à neutralidade axiológica do clínico, revelando, ao mesmo tempo, que o setting analítico tradicional, o consultório com seu divã, não está isolado dos demais dispositivos diagnósticos de gestão social do sofrimento, seja porque contribui para reforçar certas patologias, seja porque permite que se abra espaço para o reconhecimento de outras narrativas do sofrimento, bloqueadas pela gramática social, enquanto produtoras de formas de vida singulares.

Hæresis: Você define Necrogovernamentalidade como “técnicas de gestão da morte que se disseminam por diversas instituições e suas articulações com os processos de subjetivação (Franco, 2018). Essa definição  coaduna com as formas de sofrimento, no século XXI, que são, de modo geral, problemáticas no laço social, no encontro com o outro semelhante e com o Outro como discurso, como alteridade, dentre as quais: a epidemia de diagnóstico de autismo (e não de autismo), as depressões, o suicídio, a paranoia como modalizadora do discurso político e social, as insistentes demandas – na clínica – em torno de um desamparo crônico, e o número elevado de crianças com as mais variadas dificuldades de (e na) linguagem.  Trata-se de um arranjo estrutural onde, no sintagma freudiano ‘pulsão de morte’, a imaginarização dos discursos fez apagar a pulsão, restando a morte como o centro do laço social?  

Fábio: É preciso entender a melancolia e a sua gramática do sofrimento como modos de produção de subjetividades cada vez mais determinadas pelos imperativos superegóicos. O melancólico sofre porque, identificado com a falta, com o objeto rejeitado, sente-se baixo e indigno de atender às expectativas normativas das quais dependem seu reconhecimento social. Assim, retomando o que disse anteriormente sobre a pulsão de morte, tal como Lacan nos permite interpretá-la, parece-me que a saída da melancolia dependeria da indeterminação do horizonte normativo fornecido pela forma-indivíduo, indeterminação esta que, justamente, diz respeito ao trabalho da força disruptiva da pulsão de morte.  

Hæeresis: A Vala Clandestina de Perus é tomada, por você, como um paradigma, um modelo de inteligibilidade [e de criação] da economia contemporânea de poder, nos termos do filósofo italiano Giorgio Agamben, como o que nos permite compreender nossa realidade, onde o singular e o universal se realizam.  Você a apresenta como um caso paradigmático. Esta questão se insere sobre o significante ‘caso’. Para a psicanálise, sem entrar em todas as especificidades que o termo impõe ao campo psicanalítico, um caso é aquilo que se escreve em torno de um enigma, do resto não redutível à teoria, aos conceitos. O que permanece irredutível no caso Vala de Perus?

Fábio: Essa é uma excelente pergunta. De fato, a minha tese é a tentativa de circundar a vala, cuja associação com o furo do Real é quase imediata. A ditadura civil-militar brasileira dedica-se a montar um complexo dispositivo de desaparecimento justamente para desrealizar não apenas as resistências políticas diretamente mobilizadas na luta contra o regime autoritário, mas, principalmente, aquelas formas de vida consideradas ou ameaçadoras, porque colocavam em risco moral ou socialmente a segurança nacional, ou simplesmente descartáveis, pois, no Brasil do nacional desenvolvimentismo – mas, não apenas –, não há lugar para moradores de rua, pacientes psiquiátricos etc. Para que a desrealização fosse completa, descaracterizaram os corpos, apagaram ou adulteram os registros, perderam os documentos, mudaram os nomes, proibiram as manifestações rituais de luto público, bloquearam os obituários, em suma, como diz Butler a respeito dos mortos nas guerras do Iraque e Afeganistão, foracluíram essas perdas. Porém, esses cadáveres retornaram, não dois ou três, mas cerca de 1.500. Enfatizo a aproximação quantitativa, pois ela é significativa, não apenas na medida em que conta da destruição sistemática desses corpos, desde a exumação, passando pela reinumação na vala, pela exumação definitiva, em 1990, pelos diversos trabalhos de análise forense para identificá-los, levando-os a passar por condições de armazenamento totalmente inadequadas, de forma que, ao final, resta praticamente impossível individualizar esses conjuntos esqueléticos, mas é significativa sobretudo porque revela o que Marc Nichanian, ⁸ a partir das narrativas construídas sobre o genocídio dos armênios, no início do século XX, identifica como um dos traços fundamentais das catástrofes: sua indefinição, a impossibilidade de representá-la sob uma imagem capaz de totalizá-la como Um, o que não é sem consequências para o luto. Nesse sentido, o caso Vala de Perus abre no coração do governo ditatorial brasileiro, e no muito que dele resta no Brasil da chamada “nova República”, a vala da indeterminação. Por um lado, isso pode produzir rachaduras irreparáveis na verdade do discurso oficial segundo o qual “nada aconteceu”, “foi uma ‘ditabranda’”, “nenhuma violação foi perpetrada sistematicamente pelo governo” e suas variações atuais, abrindo espaço para pesquisas, investigações, lutas. Por outro lado, a vala da indeterminação não deixa de, também, produzir sofrimento, na medida em que resta como um capítulo não simbolizado da história nacional, que não cessa de se repetir na história. Creio que o meu trabalho possa ser entendido de dois modos: ele se inscreve na abertura produzida pela indeterminação dos discursos oficiais, ao mesmo tempo que tenta circundar de significantes esse acontecimento que permanece em larga medida inominável.

Portanto, há muito o que se escrever, pensar e fazer com relação à Vala de Perus e aos seus desdobramentos. Em primeiro lugar, ela não é a única vala clandestina ou local de ocultação de corpos utilizado pelo governo ditatorial civil-militar. Como os relatórios das diferentes Comissões da Verdade mostraram, há provas incontestes da existência de muitas outras Valas de Perus no território nacional. Além disso, dado que a existência desses dispositivos necrogovernamentais de desaparecimento antecedem a ditadura e avançam para além dela, precisamos nos confrontar com os dispositivos de desaparecimento administrativo, que são responsáveis por muitos casos de desaparecimento no Brasil contemporâneo, bem como com a incorporação desses dispositivos a aparatos não-oficiais de governo, como as milícias. Um exemplo sensível disso é a recente descoberta de um cemitério clandestino criado pela milícia que atua na região de Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro, para ocultar corpos das vítimas, chamadas de “discos voadores”, pois sumiam do dia para a noite.

Hæresis: Na leitura de sua tese, é impossível não se questionar sobre o lugar de quem fica expectando essas valas clandestinas. É uma leitura que nos remete ao ‘cheiro da morte’, às pessoas desaparecidas, pessoas exumadas, aos sacos plásticos contendo remanescentes mortais humanos, como você descreve: o corpo fétido de esquecimento/apagamento. O lamento e constrangimento que acompanha essa leitura nos leva a perguntar: O que se pode fazer/dizer, produzir/inventar na medida em que tal leitura pode ter efeito melancólico?

Fábio: A meu ver, o próprio fato dessa tese existir indica uma saída para um provável efeito melancólico que pode decorrer da sua leitura. Por isso, insisto que a descoberta da Vala de Perus produziu também a indeterminação dos discursos com pretensão de verdade que procuravam foracluir a existência dessas violações. Com isso, paradoxalmente, ela cria espaços para a emergência de pesquisas, filmes, discursos políticos, lutas, manifestações estéticas etc. Não me sinto confortável para dizer o que se pode fazer ou inventar a partir do que escrevi, pois não acho que a relação entre a teoria e as suas eventuais consequências práticas sejam imediatas e, tampouco, diretas. Novamente, esta pergunta só pode ser adequadamente articulada na prática. Considero, no entanto, há bastante tempo, que muito já vem sendo feito. Lembremos das lutas de familiares de presos e desaparecidos políticos por memória, verdade, justiça e reparação; dos movimentos locais e nacionais de mães de mortos pela violência do Estado; dos esforços hercúleos de familiares de executados pelas polícias para produzirem contranarrativas sobre seus sofrimentos, criarem memorais, internacionalizarem a reverberação desses casos, além de muitos outros exemplos.

Hæresis: Qual sua relação com este trabalho, para além de pesquisador, como tentativa de ultrapassar o lugar teórico do problema em tese?

Fábio: Após um período trabalhando diretamente em projetos, governamentais e não-governamentais, ligados ao caso da Vala de Perus, atualmente o que venho fazendo para ultrapassar os problemas que coloco na tese é justamente a pesquisa. Considero que redescrever problemas, abrir a possibilidade de novas interpretações sobre os fenômenos, forjar conceitos, enfim, tudo isso que identificamos ao trabalho teórico ou à pesquisa é uma forma essencial de intervenção prática. Quero dizer, ecoando algo da minha formação na tradição dialética: o pensamento é prático, desde que estejamos dispostos a não reduzir a ação às expectativas utilitaristas que a vinculam direta e imediatamente a determinados fins.

Hæresis: Sobre política (se é que não estamos falando disso o tempo todo). A sentença de Jacques Lacan “O inconsciente é a política” é lida e interpretada tanto por aqueles que pensam a psicanálise na política, essa que vai às ruas, como por aqueles que não abrem mão do “inconsciente só existe na análise” e enfatizam que analista e cidadão são duas identificações distintas. Esse paradoxo tomou força de conflito no contexto das eleições de 2018, no Brasil, em movimentos como “Psicanalistas pela Democracia” e as diversas reações desencadeadas. Qual sua posição em relação à questão psicanálise e política?

Fábio: Esse debate é frequentemente recolocado a partir da distinção lacaniana entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão. Para alguns, na sua relação com a sociedade, os psicanalistas, individualmente, poderiam explicitar seus posicionamentos políticos, preservando, no consultório, a orientação ética da direção do tratamento entendida como falta-a-ser. Para outros, a dimensão política da clínica apareceria no nível tático, no da interpretação. Trata-se, certamente, de uma questão extremamente difícil, para a qual não tenho uma resposta. Começaria a articular alguma coisa a respeito, problematizando o que normalmente se entende por política quando se coloca tal pergunta. Os exemplos que vocês trazem deixam ver que ou bem se faz política indo para as ruas, para as praças, ou bem não se faz política. Mas, se reduzimos a política à ação prática direta na forma de intervenção, corremos o risco de deixar de fora da política não apenas a psicanálise, mas todo um conjunto heteróclito de práticas que não satisfazem a esse critério, a começar pela pesquisa. Portanto, creio ser importante redimensionarmos melhor neste debate o sentido de “política”. Para avançar um pouco mais nesse esboço de resposta, retomaria uma ideia de política que me parece profundamente consoante à ética da psicanálise, ideia forjada por um filósofo político muito próximo do ensino de Lacan: o já mencionado Claude Lefort. De modo muito sumário, podemos dizer que, para ele, a política se define como um espaço de indeterminação, no interior do qual os conflitos podem tomar lugar sem que lhes seja dada uma resposta definitiva. A política é pensada como abertura ao indeterminado contra as forças que pretendem reduzí-lo às figuras conhecidas da unidade: a burocracia, o ditador, o presidente autoritário ou populista que definem qual é a verdade do desejo do povo. Ora, parece-me que, mutatis mutandis, não é outro o horizonte de direção do tratamento que nos orienta na clínica. Quando, mais acima, referi-me ao papel irrecusavelmente político da clínica ao abrir espaços para formas de experiência e para narrativas do mal-estar produtoras de singularidade, apontei para o fato de que o bem-dizer é correlato de um conjunto de transformações na forma como o sujeito se socializa. Sendo assim, a psicanálise, no consultório ou na rua, só pode ser política. Contudo, há o risco iminente de que ela se associe a dispositivos de governo do sofrimento social, reiterando e colaborando para a disseminação das formas de sofrer, da codificação da gramática do sofrimento, da patologização do mal-estar. Isso, no entanto, pode se dar na rua, tanto quanto no consultório.

Hæresis: Dos dispositivos desaparecedores, apagar nomes e nomear indivíduos como ‘não-identificados’, como você elabora – desaparecimento dos nomes – nos remete diretamente ao sujeito em psicanálise como uma emergência na linguagem, uma resposta nem submissa e nem transgressora, mas subversiva à essa mesma linguagem que o causa. Desse sujeito, as passagens mais fundamentais das elaborações de Jacques Lacan são as que demostram, ao longo de sua obra, haver um rastro apagado no significante com o qual esse sujeito se identifica: o traço unário é causa e efeito do sujeito do inconsciente. Nas proposições da necrogovernamentalidade, esse desaparecimento apagaria essa possibilidade de emergência do sujeito do inconsciente, sujeito subversivo nos discursos? Ou, isso que a psicanálise sustenta como lógica e psiquismo estaria imune a essas modalidades de governo da vida e da morte? Ou, ainda, como se diz, o significante sempre irá advir, sempre escapará à essa mortificação da vida?

Fábio: Não entendo que a melancolização necrogovernamental produza a desativação de toda forma de resistência. Nenhum dispositivo governamental realiza a pretensão de um governo total, pois há sempre algo que resta ingovernável – nesse sentido, também podemos ler o impossível de governar, freudiano, e seus desdobramentos na teoria lacaniana dos discursos. Para além das saídas para a melancolia que mencionei anteriormente, relacionadas às formas mais tradicionais da ação e da estética política, a professora Adriana Vianna tem apontado para a existência de uma plêiade de esforços antimelancólicos nos quais se percebe produção de outras gramáticas do luto político, como a ida a terreiros e casas de reza, os sonhos, a composição de sambas, a escrita de cordéis. Evidentemente, a clínica psicanalítica é um espaço importante, mas não exclusivo, para a emergência de um sujeito que resiste às formas de subjetivação disponíveis.

Hæresis: As Valas-paradigmas continuam abertas. Após o decreto do Presidente Bolsonaro, de abril deste ano, contingenciando o financiamento de trabalhos como os realizados pelo Grupo de Trabalho de Perus na identificação dos desaparecidos da Ditadura Militar Brasileira,  a Ministra Damares, referindo-se à Vala de Perus, disse coisas como: “Não dá para viver de cadáveres”, e insistiu em dizer que a maioria dos corpos de Perus são de crianças com meningite, apagando os outros mais de 1000 corpos e, ainda, escondendo o porquê desses corpos mortos pela meningite terem sido jogados na Vala, como você conta. Tem-se, nesses discursos instituídos por aqueles que respondem pelo Estado brasileiro, neste momento, o esvaziamento do discurso, o desaparecimento na sua mais contundente realização: cava-se uma vala onde a história está enterrada nos termos de toda a necropolítica que você expõe. Como psicanalistas, qual direção damos a essa mortificação do discurso?

Fábio: Deixá-lo falar em outros espaços, nos quais esse discurso possa se colocar em movimento, abrir-se para outros dizeres, criar novas histórias.

Referências:

¹ Nesse sentido, o trabalho do artista maranhense Thiago Martins de Melo, que usamos como imagem do evento, ao mesmo tempo desloca para nossa sociedade e condensa o que, no Brasil, se inscreve da lógica de gestão da morte, da política cuja laço é estabelecido e mantido na determinação de quem é por ser matável. “A partir do cruzamento anacrônico de narrativas sobre resistências e decadências, simbologias e personagens, espiritualidade e sincretismos, Thiago Martins de Melo utiliza os artifícios tradicionais da pintura para falar de questões relacionadas ao Estado de Exceção no Brasil. Na obra Necrobrasiliana (2019), o artista reúne grandes telas para representar um conjunto de circunstâncias que o assombram. Sobre fundo metalizado e ladeadas por dois pilares com cabeças de índios decepadas, além da figura imponente de Carlos Marighella (ativista político e escritor brasileiro morto pela Ditadura Militar em 1969), encontram-se camadas de imagens sobre momentos circunstanciais ligados ao extermínio e problemáticas enfrentadas pelas minorias.” [Disponível em http://www.infoartsp.com.br/agenda/necrobrasiliana/]

²  USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de Filosofia, 2018 – Tese de doutorado acessível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-25022019-112250/pt-br.php

³ A referência principal aqui é SAFATLE, V. A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso. São Paulo. 2016. n. 36., p.  150-191.

⁴ Sobretudo em SAFATLE, V. O circuito dos afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

⁵ Parte dos resultados dessas pesquisas se encontram consolidades em SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018.

⁶ Para uma discussão sobre as relações entre mal-estar, sofrimento e sintoma, ver: SAFATLE, V.; Silva Júnior, N. da; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, 2018; DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017. 

⁷ Para uma profunda discussão sobre a ampliação do diagnóstico clínico para outras esferas da vida social, transformando-se em uma diagnostica, ver: DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento, sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017.

⁸ NICHANIAN, M. Catastrophic mourning. In: ENG, D. L; KAZANJIAN, D. (ed.). Loss: the politics of mourning. Berkeley: University of California, 2003. p. 99 – 124.